♡ cap.16 - nove anos, vinte e cinco anos

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No caminho para casa, memórias da infância arrebataram Rapunzel, chocando-se contra seus pensamentos como ondas ao quebrarem nas rochas.

O seu diagnóstico definitivo: "Sua filha tem esquizofrenia", o médico dissera. Sua mãe estava sentada ao seu lado, em outra cadeira, mas parecia estar a milhas de distância. Sua resposta também soou longínqua, porém a rispidez atingiu Rapunzel como uma flecha, apesar dela não esperar nada diferente. "Você não me cansa de me dar problemas? O que você quer, garota? Destruir a minha vida?"

Matt, com sete anos na época, afastou-se aos poucos, tinha medo da irmã. Receio de que ela se tornasse alguém irreconhecível. Como não sabia lidar com esse sentimento, sua resposta de defesa foi ignorá-la, mas essa técnica falhou logo nos primeiros dias. No entanto, resquícios dessa forma de lidar com as adversidades continuariam em sua adolescência. Ignorar não era fingir que nada de ruim estava acontecendo, ele diria a si mesmo várias vezes. Era apenas sobrepor-se aos obstáculos, tornando-os menores, menos importantes que qualquer ínfima coisa. Assim, quando ele colocava Rapunzel como um obstáculo, ele minimizava tudo relacionado a ela.

Vicki foi o oposto. Nas primeiras semanas após o diagnóstico, ela agarrou-se à irmã. Recusava-se a fazer qualquer coisa sem ela e não a deixava desacompanhada. Zombava da palavra "esquizofrenia", dos remédios, das alucinações. Rapunzel sabia que, no fundo, ela estava apavorada, e aquele humor duvidoso era seu modo de lidar com isso.

Eles nunca realmente tiveram uma chance com a Kelly. "Ela não é só uma péssima mãe", Rapunzel havia dito certa tarde para Kol e Rebekah. "Ela é uma pessoa péssima."

Mas havia uma memória específica que rondava a mente de Rapunzel. Ela estava sempre lá, atrás de seus ombros, esperando que ela se virasse. Que ela se permitisse por um minuto fechar os olhos e voltar à escuridão do seu quarto na nova cidade suburbana a qual eles tinham se mudado quando ela fez nove anos. Vicki e Matt tinham, respectivamente, dois e um ano. Os Donovan se mudaram poucas vezes: uma vez por causa de um emprego, uma por causa de um namorado nômade e outra porque Kelly estava exausta de Mystic Falls. Esse caso foi a última opção.

Um tremor subiu a espinha de Rapunzel. Já estava perto de casa, onde encontraria um Matt furioso e poderia se sentar ao lado dele e compartilhar dessa fúria. Naquela manhã, seu irmão ligara avisando que sua mãe levou todo o dinheiro da conta deles. "Como diabos ela descobriu essa conta?" Rapunzel questionou. Matt, já bem informado, respondeu prontamente: "Ela sempre soube. Ela deixou uma carta, Rapunzel, uma carta!"

Depois de se acalmar, ele explicou o dilema: se eles denunciassem, não apenas Kelly continuaria na vida deles por muitos anos, como ela poderia ser presa. Mas se não reouvessem o dinheiro, não poderiam pagar uma faculdade para Matt.

Ele desligou antes que Rapunzel pudesse opinar.

Ela queria estar com ele, abraça-lo, pedir desculpas pelos descuidos, mesmo sem saber exatamente quais. Nunca lhe foi problema se desculpar. Ela queria dizer a ele que entendia o rancor do abandono, por mais que não tivesse sido sua intenção deixa-lo, por mais que ele nunca tenha estado sozinho, apesar de longe ela sempre esteve disposta a fazer qualquer coisa por ele e pela Vicki. Entendia a raiva que ele nutria por Kelly, a mulher que eles chamavam de mãe. Que os criou no desprezo e na agressão, que nunca se importou em lança-los ao acaso.

Mas o contrário não era verdadeiro; Matt não entendia que a extensão da raiva de sua irmã ia além da dele. Porque Kelly, no desprezo, na agressão e no acaso, em todos os seus defeitos possíveis, arrependia-se continuamente de suas atitudes com ele e com Vicki. Ela frisava, erro após erro, que os amava. E eles até poderiam contar alguns bons momentos juntos. Rapunzel, no entanto, nunca saiu da zona de desprezo. Foi só o que ela recebeu.

E Matt também não compreendia a dimensão do que aconteceu naquela casa suburbana em uma das poucas vezes que eles moraram em outra cidade. Na cabeça dele, um dos muitos lares problemáticos. Ele não tinha memória, era muito novo, e também nunca se importou em perguntar.

Rapunzel, na estrada para casa, aquela casa cheia de cobras, aquela casa que fora cenário de xingamentos e agressões, aquela casa onde já ficara de castigo, onde apanhara, onde passara fome, aquela casa cuja sala de estar estivera repleta de garrafas vazias durante a maior parte de sua infância e cujo quarto que chamava de seu transformara-se numa espécie única de abrigo, de casulo, se ela fechasse os olhos o ritmo do seu passo tornava-se irrelevante, os sons calavam-se todos. Os sentidos, subjugados, não a permitiriam escapar. Ela tremeria e não seria por causa do frio.

E então ela teria nove anos novamente, no quarto escuro, abafado. O barulho da porta abrindo flutuaria, esguio, até seus ouvidos e a despertaria. Ao notar que quem estava entrando era Trevor, o namorado de sua mãe, o susto inicial se esvairia lentamente. Entretanto, não teria tempo de sentir esse alívio, pois logo outro susto a invadiria quando Trevor subisse em sua cama.

O mesmo susto, o mesmo pavor, o mesmo grito silencioso travado na garganta, toda vez que se lembrava, que era forçada a se lembrar porque sua mente era sua inimiga, porque seu corpo era um receptáculo de feridas abertas, uma casa assombrada com corredores repletos de armadilhas e cobras no porão que não cessavam de sibilar.

Vicki zombava da palavra "esquizofrenia". Ainda hoje, Rapunzel a recebia como uma palavra esquisita, difícil de pronunciar, de inserir no meio de outras palavras, de falar muito rápido. Mas ela se acostumou com a palavra, com seu som, com seu significado. A palavra "estupro", no entanto, lhe parecia indizível. Não era o som, nem o conjunto de letras. Era porque dizia respeito a algo que tinha acontecido com ela.

Uma vez, uma mulher no bar uma vez, querendo puxar conversa, começou a contar sobre o mais novo caso policial da cidade, a denúncia que uma amiga de uma amiga tinha feito de que foi estuprada pelo marido. "Horrível, né? Uma pessoa em quem você deveria confiar..." Ela balançou a cabeça e bebeu mais um gole de sua bebida. Soprou o ar e, gesticulando as mãos: "Nem imagino como ela deve estar se sentindo."

Rapunzel fez seu trajeto para fora daquela conversa. Detestava conversar com os clientes e frequentemente ficava ainda mais perdida.

Porém, com aquele assunto, era sempre a corda no pescoço, prestes a enforca-la, a obriga-la a se lembrar e seria como se tivesse acabado de acontecer. Era como se aquele momento e as lembranças dele fossem um só – ela não conseguiria distinguir o que era memória e o que era verdade. Se ele tinha passado a mão naquele lugar ou em outro. Se tinha dito mesmo aquelas palavras, ou se foram outras. Se ela estava deitada de barriga para cima ou para baixo no instante em que ele abriu a porta e decidiu estragar com sua vida. O pavor absoluto que tomou conta de sua mente e a impediu de pensar, que congelou o seu corpo – ele voltava, também, e ela também não saberia distinguir as nuances do fato e da memória. Fui de novo aquela garotinha de nove anos? Foi realmente assim? Acabei de ser estuprada novamente?

No dia seguinte, ela contou para a mãe o acontecido, mas foi desacreditada. Ao insistir, ela recebeu a ofensa com a qual já era acostumada mas que não compreendia: "Você quer destruir a minha vida?"

Ela não queria. Nunca quis, nem mesmo quando adulta. Nem mesmo agora.

Antes de ter a oportunidade de vê-la uma segunda vez, Trevor foi preso por assalto. No mesmo mês, ele foi morto na prisão. A Rapunzel de nove anos acompanhou atentamente essas notícias, mas a única coisa que a morte dele significava era que ela nunca mais o veria. Foi um alívio cruel e culposo, mas ela se livraria da culpa com o passar dos anos. A dor, a angústia e a vergonha, no entanto, permaneciam com ela.

Enfim, ela chegou em casa. Ao avistá-la, correu, adentrou e fechou a porta como se estivesse sendo perseguida. Matt revirou os olhos, pensando se tratar de uma alucinação.

"Não vamos denunciá-la", ela disse, ofegante. "Quero me livrar dela para sempre. Com esse dinheiro, ela pode quitar todas as dívidas e fazer vida nova."

"Você acha mesmo que ela não vai voltar?"

"Se ela for capaz de olhar na nossa cara depois disso... Não, ela não vai voltar."

Rapunzel • N. MikaelsonOnde histórias criam vida. Descubra agora