A cabeça de Mile desaba em cima do volante assim que desliga o carro, dentro da garagem de casa. Bufa, após engole, pela centésima vez, a cena do shopping de minutos atrás.
Levanta a cabeça e encara o copo de nozes açucaradas intocado no painel do carro. O cheiro do açúcar queimado e da baunilha reviram seu estômago.
E se estiver sentindo o que parece? E se...
A cabeça volta a cair no volante.
Está carente. Sente-se sozinha. Então... talvez... talvez seja a hora de sair um pouco, visitar uma balada, um pub, uma igreja, um exorcista...
Mile ri desesperada.
Quando entra no quarto, depois de uma caminhada curta na casa que denuncia uma fraqueza profunda nas pernas, depara-se com três vestidos de festa pendurados nas alças dos puxadores do guarda-roupa.
Suas sobrancelhas se juntam, enquanto examina as peças, todas num tom claro de nude, em tecido liso e levemente brilhante, tipo crepe, com decotes quadrados bem reservados.
_ Experimenta _ Elza ordena, entrando de repente no quarto, mastigando alguma coisa, os cabelos lisos amarrados num coque bagunçado. Senta-se aos pés da cama.
_ O que é isso?
_ Para o casamento do Nathan. Eu sei que faltam uns dias ainda, mas é bom deixar isso certo. Experimente e veja qual modelo fica melhor. Na minha opinião...
Mile a interrompe com um riso agudo, mais um, como numa explosão. Sim, está literalmente explodindo.
_ Está me fazendo de idiota, Milena?
_ Já conversamos sobre isso _ Mile urra, recolhendo furiosamente os vestidos, jogando-os grosseiramente em cima da cama.
_ Sim. Pois é. Já conversamos. E pensei que eu já tivesse esclarecido a minha situação para você. Você sabe que agora...
_ Aí. Essa sua amizade colorida com a Úrsula e o Gordon é só problema seu, tá! Me deixe fora disso.
_ Você é egoísta e insuportável como seu pai _ Elza rosna, o rosto crescendo, o sangue agitando seus olhos.
_ Você fala tão mal dele que estou desconfiando que foi você quem o matou.
_ O quê?
Vendo a jugular da mãe galgando de um jeito perigoso no pescoço, preparando-se para vomitar o falatório infinito sobre a merda que foi seu casamento, Mile começa a se despir, chiando, volvendo os olhos.
Elza afasta-se para a porta, encarando-a duramente com o canto dos olhos, as narinas abrindo-se enquanto puxa o ar.
Assim que Elza sai do quarto, encostando a porta, Mile se observa no espelho, os três quilos a mais concentrados nos quadris, a pele branco amarelada mais pálida do que o normal, os seios pequenos e sem forma. Agarra o primeiro vestido em cima da cama. A merda da roupa tem uns 15 botões atrás. Então procura outro, mas todos seguem uma linha ridiculamente semelhante. Começa a vesti-lo, a pele queimando, ardendo, dissolvendo seus órgãos internos.
Sobe o tecido fresco pelas pernas, encaixa as alças largas nos ombros, roçando o dedo na pele, nas cicatrizes das acnes da adolescência. De repente, odeia-se por ser tão pateticamente comum, talvez até feia. Seu rosto está maior. Talvez tenha engordado mais de três quilos. Fixa os dedos nas bochechas, sentindo ali também alguns relevos das cicatrizes acneicas, embora o ponto mais crítico seja a testa.
Leva os braços para trás. Fechas os primeiros botões, de baixo para cima.
Puxa o ar nos pulmões para chamar a mãe para ajudá-la, quando ouve três batidas na porta. Cinco segundos depois, vê através do espelho o rosto de Rony invadindo a fresta. Não pode evitar a cruel sensação de estar sonhando, visto que não é a primeira vez que o avista na porta do quarto, com essa feição brincalhona, tecida por discretas rugas nos cantos dos olhos, a contração nas bochechas expressando um riso compungido.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Certo como Murphy (COMPLETO)
RomanceVocê acredita em azar? Para a Milena de 18 anos de idade, enquanto filha do rico e poderoso Jorge Zanella, a resposta poderia ser resumida num simples e bem direto: "o quê, tá falando sério?" Por sua vez, para a Milena falida e injustiçada de 24 ano...