25. Deus não errou os cálculos comigo

226 70 33
                                    


O som da geladeira é como o de um balão se enchendo, a única coisa que se ouve na cozinha nos últimos dez minutos. Isso e o latido prolongado do Toddy, do outro lado do muro. Às vezes dá para ouvir o som do macarrão sendo sugado para dentro da boca, e depois dos dentes triturando-os em movimentos cuidadosos.

E por falar em macarrão, o Yaksoba está surpreendentemente bom: a massa e os legumes ao dente, o molho levemente adocicado, os pedaços de filé mignon macios e exatamente ao ponto.

O celular de Nathan ainda está no balcão, marcado com molho de soja e respingos do amido de milho. Certamente andou assistindo ao modo de preparado com mais calma dessa vez. Por sorte, aprendeu o suficiente no outro dia para não atear fogo no próprio corpo.

_ Isso está bom _ Mile sente-se obrigada a dizer, quando acaba de comer.

A voz dela desperta os dois rapazes, que assumem lados opostos na mesa.

Rony a encara abruptamente, como se rogasse explicações do absurdo que acabou de ouvir. Não que ele não tenha gostado da comida, porque sinalizou a satisfação, sem perceber, em mais de um momento. Não. Não por isso, e sim porque não há façanha incrível o suficiente, vinda de um Volgone, que possa merecer algum elogio. Mile o ensinou assim. Ou então porque o elogio, mesmo que eventualmente merecido, possa despertar a falsa sensação no intruso de que é bem vindo.

_ Oh! Que bom que gostou! _ Nathan manifesta-se, escorando os cotovelos à mesa. _ Fiz com muito amor, então...

_ Eu tiro a mesa _ Rony declara, interrompendo-o, arrastando a cadeira para trás.

_ Não. Não. Sou o mais inteiro aqui, amiguinho. Arrumar a bagunça é o mínimo que posso fazer depois da caca toda que fiz com vocês. Sei que querem me castigar, então... aproveitem! Ah! Depois vou trabalhar um pouco aqui na mesa. Espero que não se importem.

Nathan afasta a cadeira num risinho plástico.

Enquanto ele empilha silenciosamente a louça na pia para Rosa lavar no outro dia, Rony vai com Mile para a sala.

_ Ah, pode deixar! _ Ela levanta a mão para Rony, assim que ele alonga o braço para ajudá-la na transferência da cadeira de rodas para o sofá. É uma coisa que ela já consegue fazer bem sozinha e sente necessidade de compartilhar sua evolução com ele.

_ Muito bem! _ Ele elogia, afastando uma almofada, sentando-se ao lado dela no sofá. 

Rony alcança o controle e liga a TV. As pernas longas cruzam-se uma na outra, enquanto o pescoço vai se torcendo para trás. Avalia o Volgone por cima do encosto do sofá.

_ O que foi? _ Mile pergunta, em voz baixa, dando-lhe um cutucão na coxa, sobre a bermuda.

Ele volta a cabeça para ela no mesmo segundo. Estuda-a com a mesma expressão que o fazia com Nathan. Às vezes, ele tem um jeito sutil e ao mesmo tempo cruel  de usar o silêncio para dizer o que pensa. E agora ele diz, estupidamente claro:  Você é ridícula.

Sim, você é ridícula. Ela absorve, desejando chorar. Não era para o Volgone estar aqui agora. E já que está, por que parece tão tranquilo? O quê, vocês são amiguinhos agora, é isso? Quando você vai crescer, Milena? Vou me cansar disso uma hora dessas. E aí, quem mais além da sua mãe e da Emily vai conseguir engolir você nessa face da terra, hein?

_ Não olha para mim assim, por favor _ Mile implora em voz baixa, juntando as mãos.

Ela mal acaba de falar e as sobrancelhas dele formam dois arcos. O riso ácido de  Rony revela os dentes redondos de incisivos mais curtos, um misto congelante de repúdio, desaprovação e escárnio.

Certo como Murphy (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora