16. Tipo namoro, essas coisas

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Mile acorda com o som da cafeteira perfurando o alumínio da cápsula.

Leva alguns segundos até lembrar o motivo de estar abraçada por um sofá cujo principal atributo é devorar colunas.

Senta-se, segurando a testa.

Elza está inclinada dentro da geladeira, procurando alguma coisa. No mais, a casa está vazia. É o que parece. Mesmo assim, Mile afunila os olhos em direção ao seu quarto. A porta está aberta, a cama arrumada. Então, Nathan certamente...

_  Nathan já foi embora _ Elza explica, fechando a porta da geladeira, segurando a jarra de leite. _ Deve ter saído de madrugada. Mas também... depois de tanta humilhação... Pobrezinho. Nem sei como vou encará-lo agora.

Mile revira os olhos. Ignora-a, não porque pretende relevar a provocação, mas porque leva um tempo para despertar. 

Nathan.

Mas o nome dele lhe causa um súbito afundamento metal, semelhante ao som cheio de nuances e grave de um gongo.

Engole o pouco de saliva da boca, o estômago grelhando sua razão na lembrança fresca dos desenhos do corpo do Volgone, dos olhos dele sombreando seu rosto sem um significado decifrável... De repente, está beliscando os próprios lábios, reflexiva, o corpo formigando nalguns pontos.

Ele é tão gostoso que...

Tome esse tapa, Milena!  Ela sente a própria mão bofeteando o rosto na imaginação, enquanto cambaleia do sono para o mundo real.

É, Mile, as pessoas fodidas também sentem tesão. Parabéns! Então ela se dá conta, coçando o rosto, achando graça na própria desgraça. Na seca que está, poderia se atrair sexualmente por qualquer coisa que se assemelhasse a um homem, desde que não tivesse mais de dois olhos. Exigência única. E no fim das contas, está até feliz de ter identificado tão rapidamente o próprio problema.

Agora, com a cabeça um pouco mais fresca do que horas atrás (embora ainda dormente), também consegue recordar algo parecido com um arrepio, provocado pelo beijo de Rony ontem. Um beijo doce, receoso, tímido que, em circunstâncias normais (nas quais tinha tempo e condições mentais de namorar ou pegar uns cara por aí), certamente a encheria  de nojo. A ideia de beijar Rony beira à sensação ascosa de incesto. E deveria continuar assim, embora não possa negar que ele faça exatamente seu tipo: alto, inteligente, rosto com traços delicados, senso de humor oscilante, não fala muito, meio moralista (mas nem tanto).

Rony.

Mais um gongo.

Lembra-se da foto, o  sangue voltando a disparar nas veias.

Mile está decidida a contar para a amiga. Vai contar, acabar com pelo menos esse inferno de uma vez. Vai contar. Mas não agora. Precisa se arrumar. Corre para o quarto. Chegando lá, simplesmente não resiste em dar um jeito dele antes de em si mesma.  

Enquanto tira o lençol e vira o colchão do lado oposto, é obrigada a memorar o gatilho de boa parte das suas desgraças. O cheiro dele está no seu quarto, aliás. Não seria exagero pensar que o desgraçado mijou perfume em tudo de propósito.

E fato é que... Mile não estaria na corda bamba não fosse Nathan. Não consegue evitar a ruminação. 

Aliás, Nathan é o portal que atravessou Gabriela e Freddy para sua vida. E não haveria foto, e talvez até crise entre Emily e Rony, se não fossem esses problemas extras, de autoria exclusiva dele. Talvez Mile teria tido mais tempo para os amigos. Talvez não tivessem rompido. E se não tivessem rompido, o beijo com certeza não teria acontecido.

Certo como Murphy (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora