40. Certo como o azar

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O segundo passo de Mile para dentro da sala é recebido pelo semblante apreensivo de Rony, que rapidamente se dissolve numa fachada assustadora de ira. 

Os olhos dele revolvem para cima, ao som da chamada súbita do celular.

Mile para a um metro depois da porta, enquanto ele confere, ainda em silêncio e sentado no sofá, quem é o autor da ligação que está claramente disposto a ignorar. É de Elza. E certamente não é a primeira e nem a segunda vez que ela liga para ele este dia, a julgar pela nova revirada de olhos. Expira.

_ Saiu do trabalho mais cedo? _ Ela pergunta, meio acuada, observando no relógio da parede que ainda são cinco e meia da tarde.

Mas ele a contempla por um tempo, os olhos apertados, como numa dura crítica. 

_ O que está fazendo aqui tão cedo? _ Ela volta a perguntar, e só então percebe o tom flácido da voz.

_ Cadê seu celular, Mile?

_ Meu celular quebrou assim que lhe enviei a mensagem, hoje à tarde. _ Ela diz, torcendo para que ela não peça para vê-lo.

_ Quebrou? Deixa eu ver? _ Mas assim ele o faz, fazendo-lhe um sinal com a mão para se aproximar.

Agora ela é quem revira os olhos. Ela não está com paciência, não está no clima para cobranças e correções de conduta.

_ Então veio para me torrar, Rony? O dia de hoje foi uma exceção. Pelo menos assim espero.

Ela pendura a bolsa no cabideiro, ao lado da porta. Passa direto por ele e vai à cozinha. Enche um copo de água no filtro. Ele se levanta e segue a sombra dela.

_ O que está havendo, hein? _ Ele questiona. _ Sua mãe me enviou mensagens a tarde inteira, preocupada com você. Daí eu perguntei a ela o que estava acontecendo e nada. Ela não me explicou nada. Pensei que fosse algum problema com o resultado do julgamento. Daí eu pesquisei na internet e parece que ela foi absolvida.

_ Sim, ela foi.

_ Que bom. Mas eu realmente preciso entender. Por que esse alvoroço todo? Onde você estava?

_ No trabalho, como eu disse por mensagem.

Ela responde, depois bebe a água de uma vez.

_ Não. Sua mãe ligou nos seus dois trabalhos. Você faltou, não deu uma satisfação sequer aos diretores. E adivinha só? Freddy. É, Mile, esse cara não saiu da minha imaginação a tarde inteira. Eu só pensava para onde ele tinha te levado e que tipo de coisa estava fazendo com você. Eu estava a um triz de avisar a polícia.

Vendo a aflição dele, ela  pensa em contar sobre seu dia nefasto, mas não consegue. É inacreditável demais, vergonhoso demais. Mais inacreditável do que a personalidade do próprio Freddy.

Ela devolve o copo na pia. Instantes depois, seus olhos galgam para os dele.

Dá três passos ao lado. Abraça-o abruptamente, como se precisasse se segurar de um tombo. Por acaso, ela não pode conter as lágrimas. O soluço aprofunda-se à medida que o dia rebobina-se em sua mente, numa cruel riqueza de detalhes.

Ela não diz nada e Rony respeita seu silêncio. Apenas transfere as duas mãos para as costas agitadas dela, afaga-as, o queixo assentando no topo da sua cabeça.

_ O que eu faço com você, hein? _ Ele pergunta, agora pacífico, quebrando os três minutos de silêncio que se passaram lentamente, assim que a respiração dela descansa um pouco. _ E agora, como eu deixo você sozinha por quatro dias inteiros? Pode me dizer? Seu azar está me contaminando.

Certo como Murphy (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora