35. Vou lhe contar um segredo

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Não há lugar para estacionar no quarteirão do hospital cinza e azul pastilhado. E olha que ainda são cinco da madrugada.

A imprensa borbulha por ali. A polícia também, possivelmente cuidando para que a atividade jornalística não passe do limite e prejudique o atendimento hospitalar. Tudo bem diferente do deserto de horas atrás, quando Rony passou pelo lugar.

Então ele guarda o Jeep no outro quarteirão. Assim que desliga o motor, mira a jaqueta verde- musgo ensanguentada, embolada no banco do passageiro. A unha do polegar repentinamente está entre seus dentes. Ele a rói, aparentemente descontente com o fato de ter que encarar o ambiente frio pela segunda vez na noite.

Mas tem que fazê-lo, já que esqueceu o celular na recepção do Pronto-Socorro.

Desce do carro. Joga a jaqueta no lixo mais próximo. Caminha cerca de trezentos metros de calçada, os ombros reduzidos por causa do frio pós-chuva, com uma camiseta bege e uma calça de jeans fino. 

Consegue atravessar até que tranquilamente a pequena multidão, concentrada especialmente na porta principal, certamente por causa das manchas de sangue já escurecidas em sua roupa. As pessoas abrem caminho para ele passar. 

A porta de vidro desliza nos trilhos com a aproximação dele. E logo ele nota o clima até calmo lá dentro, também por causa do reforço interno dos seguranças. 

Ele procura o setor administrativo através das placas na parede, atraindo algumas atenções para si, por causa da sujeira na roupa. Incomodado mais agora do que antes, tenta escondê-la com os braços. Entra numa pequena sala. O rapaz magro de coluna curvada, que até então etiquetava uns objetos, aproxima com o celular antes mesmo de Rony dizer uma palavra, como se já previsse que viessem buscá-lo rapidamente. Rony reconhece o objeto. Agradece-o. Sai.

De volta ao fino corredor da administração, depara-se com Úrsula varando de uma porta à outra, a poucos metros.  Ela some. Parece não tê-lo visto. Mas reaparece instantes depois, voltando em ré. O pescoço já está virado para ele, as tranças louras laterais do penteado do casamento ainda intactas por trás de uma das orelhas, o vestido quase branco, levemente rodado, cobrindo os pés.

A mulher vai silenciosamente até ele. Rony a recebe com um sorriso tímido. Ela a abraça de um jeito ainda mais apertado do que horas atrás. As lágrimas pretas respingam no peito dele. Os braços do rapaz ficam suspensos no ar, acanhados. A mulher soluça engasgada, sufocada.

_ A senhora quer uma água? _ Ele pergunta cuidadosamente, enrubescido, ameaçando alisar as costas dela, as mãos se equilibrando no ar.

_ Não. Não. Obrigada _ Ela diz, assoando o nariz para dentro, afastando-se um passo. _ O Gordon perguntou de você _ Comenta subitamente.  _ Quando você passou por ele, horas atrás, ele estava falando com o médico, então não pôde conversar. Poderia vê-lo agora?

Ele se desbota quando ela diz o nome do homem. A ideia de estar diante de Gordon visivelmente o incomoda. Mesmo assim, talvez por causa da lastimosa situação da família Volgone, ele concorda. Então a segue pelo hospital, o mesmo que se hospedou meses atrás, por causa do atropelamento. Parece não conseguir conter a revolta que a lembrança lhe causa. O hospital mais uma vez. Mais uma vez...

A sala de espera fica a poucos metros da entrada do centro cirúrgico. Trata-se de uma área curiosamente pequena, com oito cadeiras azuis almofadas formando um "U", atrás de uma parede arredondada de vidro. De lá, dá para ver uma pedaço  da ponta brilhante da catedral de formato cônico.

Os passos relutantes do rapaz encolhem-se no momento em que avista as costas de Gordon. O homem está espectando em pé, a um palmo do próprio reflexo, a vista do lado de fora, as mãos na cintura marcando o terno de linho bege escuro, os cabelos castanhos num penteado duro, puxados para trás da cabeça. Gordon volta-se para ele. O rosto magro  tem algumas fendas entre as sobrancelhas, os pequenos olhos estão enternecidos, como se clamassem por alguma coisa.

Certo como Murphy (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora