04.ㅤㅤherança 𓂃

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Realidade: 024
REINOS UNIDOS DE AURADON

Harry praticamente sentia seus ossos chacoalhando dentro da pele. Tentava manter aquele pano úmido contra o pescoço mas um formigamento subia entre os dedos que o apoiavam ali. Ele encarou seu reflexo entre o vinco de um espelho quadrado, se focando em toda aquela sujeira que o encardia desde seus olhos até os braços. Sua mão tombou e o paninho deslizou até a cuba, ele se apoiou com ambas as mãos na beirada da pia, engolindo em seco.

Virou todo o seu tronco para a direita, evitando fazer movimentos bruscos com aquele pescoço queimado. Ele observou seu casaco vermelho pendurado, e quando se moveu para o lado oposto, viu algumas luzes noturnas atrás da pequena janela do banheiro.

O piso em seus pés era oco e rachado, a latrina fedia à vômito e a lâmpada fraca piscava com falha de vez em quando. Mas aquele foi o único lugar que conseguiu encontrar. Quando precisou fugir do fogo, se perdeu por becos e escalou a primeira janela que vira.

Era um hotel simples e abandonado, caindo aos pedaços. Mas estava vazio, e não cheirava à fumaça, então era um bom lugar, e tinha água e luz, por algum milagre.

Harry afastou lentamente as mãos da pia, testando seu equilíbrio, ele recuou alguns passos, agarrando seu longo casaco e cobrindo sua blusa branca de pontas chamuscadas. Ele ajeitou os ombros e se voltou para o espelho, paralisando por meio segundo.

Uma vez lhe disseram o quão imponente ficava com aquela roupa vermelha, lhe disseram que seus olhos profundos o tornava reconhecível. Legítimo. Um filho legítimo do pior pirata dos sete mares. O herdeiro do Capitão Gancho, que seria tão lendário quanto ele.

Harry teve de fazer muitas coisas para ser reconhecido como tal. Mas na Ilha dos Perdidos seu sobrenome era tudo o que você poderia ter, e se seu rosto transmitisse o mesmo poder que seus antecessores, então você seria temido assim como eles. Harry tinha um orgulho doentio por ser filho de quem era.

Mas agora sua admiração se tornava repulsão. Raiva. Nojo. Vergonha.

Ele havia queimado por culpa dele. E Harry jamais esqueceria dos gritos de suas irmãs, enquanto seu pai tentava salvar a si mesmo e as deixava morrer devagar, com indiferença. Ele não tinha ouvido a voz de sua mãe naquela noite, mas duvidava que ela pudesse estar em outro lugar além daquele.

Ele nunca havia ouvido um "eu te amo" do velho pirata, mas o pequeno e tonto Harry Hook acreditava que tudo que seu pai cultivava ia além do amor, era algo muito mais importante, Gancho estava deixando seu legado, deixando uma linha solta para que seus filhos se agarrassem ali e continuassem sua rota de caos.

Mas ele não os amava, afinal.

Harry se afastou daquele espelho, o coração palpitando e uma dor no tórax se expandindo. Ele fechou com força a porta daquele banheiro e se arrastou até uma cama de solteiro sem lençóis, fechou as mãos ao redor da cabeça e pressionou seu crânio com desespero, ouvindo o silêncio exterior seguido de gritos. O povo marchava lá fora, erguendo armas e caçando os últimos descendentes.

Mais cedo, Harry havia encarado seu rosto estampado numa vidraça, ele era parte do plano de retaliação. Os vilões haviam matado os filhos, irmãos e amigos daquele povo, e agora, aquele povo mataria os filhos dos vilões. Harry queria gritar para eles o quanto nenhum dos demônios se importavam com seus sucessores, e que não adiantaria de nada que o matassem, sendo que seu pai nem sequer assistiria. Capitão Gancho já havia caído do tabuleiro. Mas Harry percebeu que toda aquela ira era um acúmulo, e a retaliação era apenas uma forma de descontar a raiva de almas perdidas e condenadas, que mentiriam para si mesmas que aquilo havia sido um ato de revolução e vingança. Sangue por sangue.

Frequentemente, as faces de Mal e Uma eram impressas ao lado da dele. Eram os únicos que restavam, ao menos, pelo que o povo sabia.

Harry abriu os armários de todos os quartos não emperrados daquele hotel, conseguindo achar alguns panos longos e escuros que poderiam cobrir seu rosto para que a multidão não o capturasse e o matasse na praça pública mais próxima.

Ele aguardou pelo horário de menos movimento, quando ninguém mais tinha coragem de zanzar pelas ruas, com medo do dragão sobrevoar sobre suas cabeças. Foi se esgueirando por becos, e se misturando em multidões agitadas e fugitivas enquanto o dia passava, ouviu uma estranha voz presa em sua mente, falando para que ele fugisse. Ele apenas esqueceu aquilo, se perguntando o quão louco estava. Quando se afastou o suficiente da aglomeração, observou uma figura correndo em direção ao mar. Harry puxou seu pano para trás, que escorregou em suas costas até o chão, o que àquela altura já não era mais problema, estava escondido nas sombras onde ninguém o enxergaria.

O mesmo apertou os olhos, reconhecendo um rosto assustado debaixo da capa daquele que corria. Jay estava indo em direção às garras de Úrsula. A mesma Úrsula irada que havia gritado quando o corpo de sua filha afundou no oceano algumas horas antes.

O tempo passava. Tic tac. E não sobraria nenhum desse jeito.

guerreiros de cinzas ━ ouat x descendentesOnde histórias criam vida. Descubra agora