Volta, minha alma, para o teu repouso, pois o Senhor te fez bem.
De olhos fechados, pois a claridade incomodava meus olhos, meditava sobre esse versículo que, de repente, me veio à mente. Então me lembrei que, mesmo abatido, não existiam razões para a ingratidão. Deus havia me preservado com vida.
Então, de olhos ainda fechados, senti um nó na garganta e, em seguida, um par de lágrimas escorreram pelo meu rosto. Não podia fazer nenhum esforço. Meu corpo estava dolorido e em meus braços não havia qualquer vestígio de força. Eu estava débil. Mas as minhas lágrimas não eram de tristeza e sim de alegria.
Lorena me disse que haviam se passado 1 ano e 4 meses desde o acidente. Parte de mim se desesperou. Quantas coisas eu havia perdido? Mas então, uma tranquilidade incomum se apoderou de mim e eu pude encarar esse tempo como um período de descanso que Deus me deu. Porém era chegado o tempo de se erguer outra vez.
Eu queria rever Kevin. Sentia saudades dele. Todos estes anos, nunca ficamos distantes por tanto tempo. Lorena também me disse que ele já havia completado 9 anos. Eu havia perdido dois de seus aniversários. Mas foi reconfortante ouvir que, em ambas as ocasiões, houve comemorações. Era o sonho de Kevin ter uma festa de aniversário e eu seria eternamente grato à Lorena por ter proporcionado tamanho momento de alegria a ele.
Além disso, de repente, me peguei pensando no quão em dívida eu estava com a Lorena. Eu não podia mexer muito a cabeça, mas, do pouco que pude observar do quarto onde estava, eu logo deduzi que não era um hospital público. Quanto ela deveria estar gastando comigo? Eu precisava recompensá-la um dia. Afinal, ela já tem feito muito.
Então foi com esses pensamentos que adormeci e sonhei um sonho ameno.
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Abri os olhos, me despertando de um sono profundo e tranquilo, e logo vi um semblante que me encheu de alegria. Era Kevin. Assim que ele me viu de olhos abertos, ele saiu correndo do quarto e, mesmo um pouco distante, eu ouvi ele dizer alto no corredor:
— O Raul acordou, tia!
Eu acho que falei para ele não gritar, mas minha voz saiu tão baixa que nem eu mesmo a escutei.
Então houve um breve instante de silêncio e, logo em seguida, vi Kevin entrando no quarto novamente e vindo em minha direção. Assim que ele se preparou para se lançar sobre mim num abraço, Lorena entrou no quarto e o impediu de subir na cama:
— Não faça isso, meu bem! — disse ela docemente.
— Ele ainda está machucado? — Kevin perguntou.
Lorena me olhou de relance, mas antes que ela pudesse responder, eu decidi falar, por mais difícil que fosse:
— Eu estou melhorando...
Kevin se virou para mim e abriu um sorriso largo, que tirou meu fôlego. Era bom revê-lo. Então ele veio na minha direção novamente, mas com mais cuidado dessa vez, e me abraçou, desengonçado.
— Eu senti muita saudade de você, Raul — Kevin disse ainda abraçado a mim. — Eu melhorei rapidinho, mas a tia Lori falou que você se machucou muito mais do que eu e, por isso, precisou descansar bastante.
Felizmente, Kevin estava de cinto de segurança na hora do acidente. Ele estava dormindo quando fizemos nossa primeira parada na Bahia. Não desembarquei por receio de deixá-lo sozinho lá dentro. Então fui ao banheiro do ônibus mesmo e, na volta, esqueci de afivelar o meu cinto. Ainda me lembro do impulso para frente que sofri quando o ônibus freou bruscamente. Logo após isso, tudo é apenas um borrão. Tudo que sei é que, em determinado momento, o veículo capotou e eu fui arremessado para fora.
— Raul, eu já tenho 9 anos — Kevin continuou.
Sua empolgação me trazia vida.
— Sabia que no meu aniversário de 8 anos a tia Lori me levou para conhecer a praia? — Ele olhou para Lorena, que sorriu.
— Mesmo? — Murmurei, fazendo todo o esforço possível para mantê-lo animado. — E você... Gostou?
— Gostei muito! O mar é grandão e a areia é muito bonita. A gente até andou de barco e jet ski.
Lorena riu baixo e disse:
— Não era um barco, amor. Era uma lancha.
— Ah, é verdade! A gente vai voltar lá, tia?
— Vamos sim. E, dessa vez, vamos levar o Raul.
Ela me olhou com um sorriso largo e eu quis sorrir também, mas não consegui como esperava. Por sorte, ela parecia entender a minha fraqueza.
— Você vai gostar muito, Raul. A gente ficou num hotel e jogamos vôlei na areia. Depois, a tia Lori comprou uma pizza e eu comi 4 pedaços — Kevin fez o número quatro com a mão esquerda. Ele também era canhoto como eu.
Então ele começou a rir sozinho e se explicou:
— Eu comi tanto que eu passei mal, Raul. Eu fiquei todo cheio de caroço. Fiquei parecendo um plástico bolha.
Lorena riu e eu também, mas internamente. Eu já havia me esquecido do quão espontâneo meu irmão era.
— Mas aí a tia Lori me levou no hospital e eu fiquei bom. O remédio era ruim. Mas eu fiquei bom.
Quando terminou de falar, Kevin olhou para Lorena, que passou uma mão pelos cabelos dele e se voltou para mim, dizendo:
— Ele teve uma reação alérgica a um condimento da pizza.
Sorri internamente.
Era bom ver que Kevin estava em boas mãos. A Lorena era a pessoa perfeita para ele. Eu não poderia esquecer de agradecê-la depois por cuidar do meu irmão enquanto eu estava impossibilitado.
Certamente, Deus cuidou de cada detalhe.
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O Malabarista - Concluído
SpirituellesRaul é um morador de rua que perdeu sua mãe e, desde então, vive debaixo de um viaduto com o seu irmão mais novo chamado Kevin, de apenas 7 anos. Ele vive sem muita esperança de ter a sua sorte mudada, embora esteja sempre consolando o seu irmão, di...