Como dentista, eu já passei por várias situações, tanto boas quanto ruins. Acho que poderia escrever um livro contando todas as histórias que já presenciei no meu consultório. Há aqueles pacientes que entram na minha sala como se estivesse adentrando uma casa mal-assombrada. Outros sequer entram. Existem, ainda, pacientes impacientes que querem fazer o trabalho por mim. Há as crianças, os idosos e os adolescentes. Os que me suplicam para não aplicar anestesia e os que clamam pelo contrário.
Já atendi familiares, amigos e estranhos. Brasileiros e estrangeiros. Até mesmo o governador do estado.
Já quis desistir do meu trabalho por causa de situações constrangedoras, mas também já me orgulhei após finalizar um tratamento e ver o resultado do meu esforço.
Já trabalhei doente, triste e feliz.
Já trabalhei com a cabeça nos meus problemas, mas também já trabalhei até esquecer das minhas frustrações.
Às vezes, o trabalho é o meu refúgio, o lugar onde me coloco em segundo plano e priorizo os interesses dos meus pacientes.
Mas por que estou dizendo tudo isso?
Bem, eu sou dentista há quase 10 anos. Formei aos 22 e logo comecei a trabalhar na clínica de uma amiga dos meus pais. Mas eu nunca, em todos esses anos, tive um paciente como o Raul.
Ele estava tenso, era perceptível. Ele segurava nas laterais da cadeira como se estivesse em queda livre. Seus braços estavam duros e sua testa estava levemente umedecida com suor, apesar de o ar-condicionado estar marcando 24° graus. Mas o curioso é que, até então, eu estava apenas avaliando seus dentes. Sequer tinha cogitado a ideia de pegar uma agulha ainda.
E ele me fitava, como se estivesse me pedindo clemência. Eu conhecia aquele olhar. Afinal, ele não é a única pessoa que deita nessa cadeira à minha frente e me olha desse jeito. Mas, talvez, ele tenha sido a única pessoa a me fazer sorrir com os olhos e brincar:
— Com você me olhando assim, fica difícil me concentrar no meu trabalho.
Ri abafado por debaixo da máscara e ele pareceu rir também, desviando seu olhar de mim por alguns instantes, mas logo voltou a me fitar e murmurou algo que não entendi a princípio.
— É o quê? — Perguntei tirando o espelhinho de sua boca e rindo.
— Desculpa, eu não percebi que estava te encarando.
— Raul, Raul — falei, brincalhona.
Então deixei de lado o espelho e o fitei, eu havia terminado minha avaliação.
— Você já usou aparelho? — perguntei.
— Não... Vou ter que usar? — O desespero dele era quase palpável.
— Não, ao contrário. Eu tô perguntando porque os seus dentes são certinhos.
Por um instante, ele pareceu ficar mais aliviado. Então, retomei:
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O Malabarista - Concluído
EspiritualRaul é um morador de rua que perdeu sua mãe e, desde então, vive debaixo de um viaduto com o seu irmão mais novo chamado Kevin, de apenas 7 anos. Ele vive sem muita esperança de ter a sua sorte mudada, embora esteja sempre consolando o seu irmão, di...