O caminho até a clínica foi, inicialmente, marcado por um silêncio denso entre Lorena e Raul, que iam cada qual imerso em seus próprios pensamentos. Para o jovem rapaz era estranho estar na rua outra vez, logo após a noite anterior. De dentro do carro, o mundo parecia carregar consigo certa coloração que, antes, Raul era incapaz de ver. De repente, não pareceu cansativo viver, não pareceu exaustivo se levantar pela manhã e encarar a realidade. E pensar que talvez nunca mais precisaria voltar para debaixo daquele viaduto, verdadeiramente aquecia o seu coração, trazendo alívio e até uma ponta de satisfação.
Então, em determinada parte do trajeto, Lorena olhou para Raul de relance, vendo-o encarando o porta-luvas do carro.
— Tudo bem? — ela perguntou.
— Sim...
O jovem rapaz olhou para Lorena de relance e explicou:
— Só estou imaginando como será voltar a ter uma vida, no mínimo, digna. Passei tanto tempo debaixo daquele viaduto com Kevin que... É meio estranha a ideia de ter um emprego e uma casa, sabe?
Lorena assentiu, atenciosa, e, estacionando seu carro em frente à clínica, disse:
— Vamos?
Raul, antes de se mover para fora do carro, encarou a construção grande e de fachada branca. No mesmo instante, sentiu uma ansiedade enorme lhe abater, mas, apesar disso, respirou fundo e saiu ajeitando os cabelos com as mãos.
Sentia-se estranho e essa sensação só foi piorando à medida que ia dando passos em direção à porta de entrada, ao lado de Lorena. De fato, ninguém o estava observando minuciosamente, todos que direcionaram seus olhares para os dois, o fizeram apenas por força do hábito. Mas Raul se sentiu tão exposto como se estivesse nu, pois tinha a impressão de que todos o julgavam pelo olhar. Ainda mais porque era evidente que aquela era uma clínica da alta. Tudo muito limpo, todos muito bem vestidos. De repente, se tornou inevitável para o jovem rapaz não se envergonhar do sapato sem meia que usava.
— Bom dia! — saudou Lorena ao alcançar o balcão da recepção.
— Bom dia. Em que posso ajudar? — perguntou a atendente, diligentemente.
— O Dr. Henrique está atendendo hoje?
— Sim. É para você?
— Não. Não.
A loira se voltou para trás e olhou para Raul que, retornando à realidade, descruzou os braços e pigarreou, a fim de dizer algo, mas Lorena disse primeiro:
— É pra ele.
A atendente olhou de relance para Raul, esboçando um certo desdém, e então lhe entregou uma prancheta com um formulário.
— Preencha isso — disse ela indiferentemente, deixando o balcão e entrando em uma porta ao lado.
Tanto Lorena quanto Raul haviam notado o olhar da atendente e, ao vê-la sair, trocaram rápidos olhares. Então, apoiando a prancheta sobre o balcão, o jovem rapaz se colocou a preencher o formulário.
De repente, Raul se voltou para a loira, dizendo:
— Só vai ter um problema.
— Qual?
— Eu não tenho endereço, nem telefone de contato e nem sei o número do meu documento de cor.
Lorena observou o formulário e, no mesmo instante, a atendente retornou, ainda com seu semblante desconfiado.
— Licença. Ele não tem endereço e nem telefone de contato. Ele pode colocar o meu? — Perguntou Lorena.
— Não tem?
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O Malabarista - Concluído
EspiritualRaul é um morador de rua que perdeu sua mãe e, desde então, vive debaixo de um viaduto com o seu irmão mais novo chamado Kevin, de apenas 7 anos. Ele vive sem muita esperança de ter a sua sorte mudada, embora esteja sempre consolando o seu irmão, di...