Capítulo 9

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Raul não era muito de falar, ou melhor, adquiriu essa característica quando sua vida pareceu rolar morro abaixo. E foi justamente por isso que permaneceu em silêncio por quase 10 minutos, até que Bernardo, que também não era o garoto mais falante do mundo, mas que, naquela ocasião, se viu curioso, perguntou:

— Você curte videogames?

Bernardo era apaixonado pelos games como a maioria dos garotos de sua idade. Mas ele detestava jogar com seu irmão mais novo, que, talvez pela idade, sempre acabava pirraçando se o placar não fosse conforme sua vontade.

Por isso, vendo Raul ali, ocioso, Bernardo pensou ser uma boa ideia apostar em um novo parceiro de videogames.

Raul ergueu o olhar lentamente e fitou Bernardo por pouco tempo. Depois, respondeu em um tom tímido:

— Faz muito tempo que eu não jogo nada.

De fato, havia tempos. Depois de tantos anos tendo como prioridade conseguir, pelo menos, duas refeições ao dia e um teto para se refugiar, o videogame era a menor de suas preocupações.

— Quer jogar? — Bernardo perguntou, estendendo-lhe um dos controles do PlayStation.

É claro que Raul queria jogar, afinal, aquela seria uma grande oportunidade para relembrar os velhos tempos, quando a vida era menos pesada. Mas a timidez foi maior do que qualquer vontade.

— Não, eu...

Raul não teve tempo para responder, pois logo o interfone da casa soou. A pizza havia chegado.

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Lorena terminou de se banhar e desceu para o primeiro andar, onde encontrou as duas caixas de pizza sobre a mesinha de centro da sala, devoradas. A loira estranhou que não viu ninguém. Mas então, quando pensou em ir à cozinha, a fim de averiguar se havia alguém lá, viu, através da porta de vidro da sala que dava acesso aos fundos, uma luz azul andando de um lado para o outro.

Ao se aproximar, a loira percebeu que se tratava do hoverboard de Bernardo, que havia chegado ainda naquele dia.

Bernardo, Ícaro e Kevin estavam estáticos, assistindo Raul se equilibrar sobre o brinquedo com grande facilidade. Então, mesmo sem perceber, Lorena sorriu.

Raul, a despeito de toda a situação onde se encontrava há 4 anos, havia preservado sua genialidade, que, agora, trazia consigo um traço cinzento. Havia aprendido a andar de monociclo sozinho e, de igual maneira, aprendeu a arte do malabarismo, o que era quase uma metáfora para ele: equilibrava aqueles pinos todos os dias nos semáforos na esperança de ser capaz de fazer o mesmo com suas emoções. E, claro, se equilibrar sobre aquele brinquedo de Bernardo foi, talvez, a coisa mais simples que fez em 4 anos.

— Uai! Como você conseguiu assim, tão fácil? — Bernardo perguntou, extasiado.

— Meu irmão é malabarista — disse Kevin antes mesmo de Raul formular uma resposta.

— Daqueles que se equilibram num monociclo? — Bernardo perguntou, vislumbrado.

Raul, por sua vez, coçou os cabelos, descendo a mão para a barba, enquanto analisava seus próprios pensamentos. Então, quando ele ergueu o olhar despretensiosamente, viu Lorena parada perto da piscina.

— É isso aí — respondeu o jovem rapaz por fim, sem saber ao certo o que dizer.

— E é difícil?

— O quê?

— Andar de monociclo. Porque eu sempre quis aprender, mas a minha mãe nunca quis me dar um.

Lorena se aproximou dos dois com os braços cruzados, pois, apesar daquela parte dos fundos da casa ser coberta, a chuva lá fora fazia entrar um vento frio.

— Você já tem tanta coisa, Bernardo — disse a loira.

— Mas não tenho um monociclo.

Bernardo se voltou para Raul novamente e repetiu a pergunta:

— É difícil?

— Tudo é difícil antes de você aprender, mas não é impossível. O monociclo usa princípios bem conhecidos da física, então...

— Você é bom em física? — Bernardo perguntou, curioso.

— Bom, eu...

— É que...

O garoto praticamente correu até o interior da casa, apanhando alguns cadernos e livros que estavam sobre um dos sofás. Depois, ele voltou animadamente e foi direto até Raul, que estava entre a timidez e a disposição em ajudar.

— Você consegue me ajudar nisso daqui?

Lorena, julgando que o filho estava indo longe demais, interveio, dizendo:

— Bernardo, o que é isso? O Raul mal chegou e...

— Tudo bem — murmurou o jovem rapaz, gentilmente.

Então, notando que Raul havia aceitado lhe ajudar, Bernardo o chamou para um dos sofás que estavam dispostos perto da piscina, formando uma área aconchegante para lazer e descanso. Lorena, por sua vez, permaneceu no mesmo lugar, um pouco risonha.

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Kevin e Ícaro haviam brincado até ficarem cansados o suficiente para caírem exaustos sobre a cama. Raul ficou apreensivo quando viu o irmão mais novo dormindo no quarto de Ícaro e quis levá-lo para o quarto de hóspedes que Lorena lhe havia cedido. Mas assim que ele tentou pegar o garotinho, choramingos soaram e ele abandonou a ideia.

Por um momento, Raul havia se esquecido das aflições que insistiam em assolá-lo. Foi bom para ele se distrair um pouco, ensinando Bernardo a se equilibrar sobre o hoverboard. Mas então, quando se viu sozinho naquele quarto, tudo voltou como uma avalanche.

De fato, tinha muitos traumas, muitas feridas que precisavam ser curadas. Porém, estranhamente, não foi isso que o fez desabar. Ao olhar aqueles móveis, a cama feita, o guarda-roupa relativamente grande, a TV, uma ansiedade sem precedentes o abateu. De repente, Raul se viu temeroso do que poderia ser do amanhã.

Ele tinha medo de descansar a alma e, no dia seguinte, acordar percebendo que tudo não havia passado de um sonho. Não queria criar esperanças à toa.

E foi justamente quando Raul se sentou na beirada da cama, sentindo os olhos arderem, que ouviu algumas batidas na porta.

— Pois não? — respondeu Raul ao atender a porta.

Seus olhos estavam um pouco vermelhos, pois, no caminho até a porta, não foi possível disfarçar o choro. E é claro que Lorena percebeu.

— Eu só vim trazer o...

A loira se deteve brevemente, distraindo-se com o esforço que Raul fazia para disfarçar as lágrimas.

— Eu só vim trazer o controle do ar-condicionado, — ela continuou — porque, apesar de estar chovendo, às vezes, pode ficar um pouco abafado.

Raul recebeu o controle em sua mão e, com a voz um pouco falha, agradeceu:

— Obrigado.

O silêncio do jovem rapaz, sua inexpressividade, incomodava Lorena, que, de alguma forma, se sentia culpada. Por isso, tomando uma pequena dose de coragem, ela esfregou as duas mãos e disse timidamente:

— Obrigada por... Hoje mais cedo, me defender daqueles...

— Não precisa me agradecer! — interrompeu Raul.

Lorena ergueu as sobrancelhas, levando alguns segundos para assimilar as palavras do rapaz. Não havia compreendido o porquê daquela interrupção. E a verdade é que não foi uma interrupção brusca, como se ele quisesse soar agressivo, bruto, seco. Ao contrário, suas palavras, por mais sérias que tenham sido, soaram ternas. Se fosse em outras circunstâncias, quem sabe, Raul até teria dado um sorriso torto, mas, naquele momento, na condição em que se encontrava, sorrir era doloroso demais.

O Malabarista - ConcluídoOnde histórias criam vida. Descubra agora