Capítulo 5

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Kevin correu até Raul e o ajudou a se reerguer. Então, ao se levantar, o jovem rapaz deixou à vista o sangue que escorria despistadamente pelo canto de sua boca e o hematoma roxo que tinha em sua bochecha esquerda.

— Caramba! — Lorena exclamou, chocada, aproximando-se de Raul. — Tá tudo bem?

— Tá tudo ótimo! — respondeu o jovem rapaz rispidamente enquanto afagava a barriga. — Não vê que tudo que eu estava precisando agora era um soco na cara e um chute no estômago? Obrigado, moça. Muito obrigado!

Com dificuldade, Raul saiu mancando na direção da cabana.

— Raul... — Kevin murmurou, tentando segurar o irmão, mas de nada adiantou.

Raul se deteve e se voltou para Lorena, que permanecia parada, sem reação:

— Agora, se você tá querendo me ferrar de vez, leva o Kevin com você. Some com ele no mundo e me deixe aqui sozinho. Porque é só isso que tá faltando para a minha vida piorar de vez. 

Lorena se corroía por dentro: será que havia errado ao ir ali? Estava sem reação. Raul estava demasiadamente enraivecido, mais por ela ter provocado aquela agressão do que pelos capangas de Tales que o chutaram e socaram covardemente.

— Raul, para... — Kevin choramingou e agarrou o punho do irmão. — Vamos com ela.

— Vamos com ela para onde, Kevin? — Raul perguntou, incrédulo.

Então ele olhou de relance para Lorena e, depois, ordenou ao irmão:

— Volta pra cabana!

— Não! — Kevin exclamou começando a chorar e Raul, impacientemente, tentou puxá-lo para dentro, enquanto o pequenino tentava resistir de todas as formas possíveis.

Lorena, então, mesmo ainda horrorizada com o que havia acontecido, se aproximou com cautela, dizendo:

— Desculpa, tá? Eu não sabia que tudo isso ia acontecer. Eu só queria ajudar...

— Ajudar quem, moça? Se tudo que você fez foi provocar isso. Olha!

Raul apontou para o hematoma em seu rosto e Lorena, sem graça e até com a consciência pesada, o olhou com certa culpa. Kevin, por outro lado, que conhecia bem o irmão, abraçou sua cintura e insistiu:

— Para, Raul. Para de brigar. Você não é assim. A Lorena veio ajudar a gente.

Alheio às súplicas de Kevin, o rapaz encarou Lorena por mais alguns segundos, até que ela, com uma paciência não lhe era muito comum, tentou outra vez:

— Desculpa... Eu... Olha, eu sei que isso é complicado pra você, mas eu não tenho más intenções, eu juro. Eu só tava indo para casa e pensei... Pensei que, talvez, vocês fossem querer um lugar melhor para dormir hoje, porque não deve ser nada bom dormir debaixo de um viaduto com toda essa chuva caindo e...

— A gente tá na rua há 4 anos, moça. Não é a primeira chuva que a gente enfrenta — Raul retrucou com um semblante fechado.

— Mas poderia ser a última vez, não acha? Ou você quer viver aí para sempre?

As palavras de Lorena foram como um choque para o jovem rapaz. Ele, obviamente, queria sair dali e ter uma vida mais digna, mais decente, mais saudável, mas a verdade é que não se sabe como se vai reagir diante da mudança até que ela aconteça.

— Moça, vai embora, por favor.

— Não, Raul — Kevin disse fungando e agarrou a mão de Lorena, tentando impedi-la de ir embora. — Não vai, Lorena! Fica aqui. Por favor, fica aqui — o pequenino suplicou e, voltando-se para o irmão, insistiu: — Raul... Não...

O maior objetivo da vida do jovem rapaz era fazer Kevin feliz. Dia após dia era uma luta acirrada para colocar nem que fosse um pequeno sorriso naquele rostinho fino. E, agora, via-o chorando como nunca havia feito antes. Por um instante, sentiu-se como se fosse um monstro por estar recusando quiçá a única oportunidade de, finalmente, poderem sair da rua. Mas algo dentro de Raul, um orgulho, uma resistência, um medo, um receio, uma desconfiança, o que seja; o impedia de dar o braço a torcer.

— Raul, — receosa, Lorena se aproximou mais um pouco — olha, eu...Eu não tenho a menor intenção de separar você do Kevin. Eu só quero ajudar, só isso. Eu acabei de chegar do trabalho e, vendo essa chuva, lembrei de vocês dois e... Bem, você sabe que aqui não é um bom lugar nem para o Kevin e nem para você.

— Eu sei o que é bom para mim e para o meu irmão.

— Claro...

— E eu já confiei à muita gente o poder de decidir o que é bom ou ruim para nós dois e, em todas as vezes, eu me ferrei. Em todas as vezes!

— Mas eu não...

Lorena deteve as palavras por um instante e riu com certa impaciência. Então, passando os dedos por entre seu cabelo loiro, que estava solto, prosseguiu sem entender porque sentia tanta necessidade de se justificar:

— Eu não quero enganar você. Eu só quero dar um lugar para vocês dormirem hoje à noite.

— E por quê?

Outra vez, Lorena riu e Raul, com uma voz embargada, continuou enquanto ainda tinha Kevin abraçado à sua cintura:

— Porque todos disseram isso para mim, todos vieram com essa fala mansa e eu tô cansado, moça. Cansado! Eu sei que o melhor lugar para o Kevin não é na rua. Ninguém precisa ficar me lembrando disso o tempo todo, eu já sei. Mas eu também sei que o melhor lugar para ele é ao meu lado, porque foi a mim que minha mãe o confiou. Não foi à assistente social nenhuma e nem ao conselho tutelar. Não foi a nenhum deles. Foi a mim. A mim!

Ao terminar, suas palavras se esgotaram. Havia dito quase tudo. Havia tirado grande parte do peso que estava em suas costas. Mas o preço a se pagar por tal feito foi o choro que veio urgente e de repente. Seu rosto ainda doía por conta do soco, do canto de sua boca ainda escorria um pouco de sangue e seu estômago continuava dolorido. Kevin, ainda com os braços ao redor de sua cintura, apertou-o ainda mais forte, recebendo em resposta a mão de Raul que passou levemente pelos seus cabelos molhados em sinal de carinho.

Diante de tudo aquilo, Lorena, atônita, não sabia se ia ou se ficava. Não podia com emoções fortes naquele momento, porque já tinha as suas próprias, mas, mesmo não podendo, tentou pela última vez:

— Podem ir lá pra casa se quiserem. Eu, inclusive, tenho uma pomada para...

A loira gesticulou a mão, sinalizando o hematoma no rosto de Raul que tinha um aspecto cada vez mais roxo.

— Por favor, Raul. Vamos! — Kevin insistiu pela enésima vez.

O rapaz, por outro lado, notando que havia ido além de suas emoções, passou uma das mãos pelo rosto, disfarçando as tímidas lágrimas que haviam escorrido, e, ainda resistente, buscou por desculpas:

— A gente vai sujar o seu carro.

— Esse é o menor dos problemas — Lorena assegurou com um pequeno sorriso.

— Viu, Raul? Viu? — Kevin saltitou, feliz. — Nós vamos? 

Com muito custo, o jovem rapaz olhou de relance para Lorena e, depois, voltou o olhar para o irmão, que já havia deixado as lágrimas, e disse num tom quase inaudível:

— Vamos.

— Eba! — exclamou Kevin que, mais do que depressa, saiu correndo na direção da cabana, indo buscar alguns poucos pertences.

Raul, por sua vez, permaneceu onde estava por alguns instantes, encarando Lorena que lhe devolvia o olhar sem hesitação. Por fim, sentindo as pernas pesadas, também foi até a cabana e apanhou seu monociclo e seus artigos de malabarismo.

Enquanto Kevin deixava sua alegria extravasar, Raul não conseguia dar um sorriso sequer. Dormir fora da rua depois de 4 anos, por mais incrível que pudesse soar, parecia bem mais difícil do que imaginava. 

Ele ainda não havia percebido que suas orações estavam sendo respondidas.

O Malabarista - ConcluídoOnde histórias criam vida. Descubra agora