O ciclo da vida

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O banco verde ainda continuava ali de frente para o lago. Espanei algumas folhas secas e sentei-me. As árvores traziam uma paleta de outono contrastando com um céu azul de pintura. Tirei um livro da mochila e deixei-o descansar no colo.  Meu olhar foi além, focando no playground do outro lado do lago.

Minha mãe costumava me levar ali quando criança. Ela e todas as mães da vizinhança. Elas faziam um círculo protetor em torno dos seus e fofocavam sobre os outros. Lembro-me de pegar fragmentos de conversa entre mordidas em sanduíches frango e goles de suco de uva.

"Dizem que a casa dela está repleta de livros e teias de aranha."

"Ela é muito esquisita, sempre sentada lá sozinha."

"Quem?" Perguntei com a boca cheia de pão e maionese.

"Ninguém, querida. Não fale de boca cheia. Não é educado. A Fernanda vai pensar que eu não te dou educação.

"Ah, imagine, Cibele? Por favor, não diga uma coisa dessas"

Revirei os olhos e, antes de morrer de tédio, corri para o balanço mais próximo. Do alto, vi uma mulher do outro lado do lago, mas ela não estava sentada sozinha. Um livro lhe fazia companhia.

Alguns dias mais tarde, acontecia a competição anual de barquinhos de controle remoto no lago. Meu irmão caçula não cabia em si de contente com sua estreia no mundo dos meninos grandes com seu barquinho azul brilhante pintado à mão. Ele fez tudo sozinho com a minha ajuda. Mamãe estava toda orgulhosa e exuberante, abrindo espaço entre a multidão para passar barco e piloto.

Eu fui direto para a linha de chegada do outro lado do lago. Meu barco tinha afundado na minha primeira corrida e me recusei a participar de outras competições. Em compensação, passei a me divertir trabalhando nos bastidores. Ajudar meu irmão caçula foi moleza, difícil mesmo foi ajudar Liam a ganhar no ano anterior, com aquele barco requintado que parecia uma caravela do século XV! Ninguém acreditou que seria possível até seu barco cruzar a linha de chegada! Liam pagou pela minha colaboração com doces, bem, mais ou menos, porque nós comemos tudo juntos!

Organizar crianças ansiosas e pais malucos nunca foi uma tarefa fácil, costumava levar séculos, então girei nos calcanhares, virei para o banco e... parei. A mulher alvo das fofocas estava lá me encarando por trás de um livro grosso. Seus grandes olhos castanhos delineados nos cantos externos tinham um brilho curioso. Ela fechou o livro e me examinou atentamente.

"Sente-se se quiser, eu também gosto de companhia." Ela bateu no banco ao seu lado. "Este é o melhor lugar para assistir à corrida, não se pode apreciar a arte de perto, alguns detalhes são apenas visíveis de longe."

Ocupei o lugar ao seu lado e espremi os olhos tentando ler as palavras de cabeça para baixo na capa do livro que repousava em seu colo.

Ela endireitou o exemplar e me entregou "Este é um livro que toda mulher deveria ler. Talvez não na sua idade, mas um dia."

"É sobre o quê?" Abri e folheei as páginas cheias de texto.

"A natureza selvagem que habita todas nós." Ela vasculhou a mochila a seus pés. "Mas eu tenho algo aqui que tem mais a ver com você." Ela trocou o livro grosso que eu segurava por um menorzinho.

Observei meus dedos deslizarem sobre as letras douradas incrustadas na capa de couro marrom formando o título, Fábulas de Esopo.

"Eu costumava ler esse livro até pegar no sono quando tinha a sua idade. Posso emprestar pra você, se você quiser. Eu sei todas as histórias de cor agora." A gentileza na sua voz tornou a recusa impossível.

Amor ÁsperoOnde histórias criam vida. Descubra agora