Carolaine

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"Circulando." Uma voz de homem bradava, enquanto ela girava no carrossel de unicórnios. A mulher de laranja sorria em um balanço a seu lado. O vento fazia seus cabelos dançarem, lançando o perfume do xampu de pêssego.

"A festa acabou. Vá embora!" A voz insistiu. A menina de olhos verdes e vestido estampado de pequeninas flores agarrou-se à montaria com mais força. "Eu não quero ir!" Suplicou. "Por favor, diga a ..." Encarou o balanço vazio. Então um empurrão a derrubou. Estava no chão.

Abriu os olhos enquanto esfregava a costela direita. Um imenso coturno preto a cutucava repetidamente. "Levanta! Circulando! Se não colaborar vai andar de viatura." O olhar duro do policial de preto não deixava dúvidas sobre o que viria a seguir.

Carolaine não questionou. Em silêncio pegou a sacola de plástico da Drogasil sobre a qual dormia e correu. Não importava para onde, precisava sair dali. A primeira vez que ela viu aquele olhar foi no rosto de seu pai. Repulsa temperada com ódio.

Era uma tarde de sábado. A mãe estava no trabalho, fazendo faxina em casa de madame. O pai fazendo a ronda no centro da cidade. Os irmãos na rua, jogando bola na rua de terra. Tinha um vestido estampado no armário da mãe, era lindo, um pouco grande, para o seu corpo magro de adolescente. Meteu-se dentro dele e nos sapatos de salto alto. Olhou-se no espelho do guarda-roupa. Parecia uma princesa vestida assim. Abriu a primeira gaveta do armário e tirou de debaixo da pilha de calcinhas da mãe o único batom, quase intocado. Com cuidado desenhou a boca em formato de coração. Estava pronta.

Correu para a sala e ligou a TV no seu programa favorito; o clube do Bolinha. Ela cantava e dançava na frente da TV junto com cada apresentação musical, como se fosse uma artista. O quadro dos transformistas era o seu preferido, era lindo de ver todo aquele brilho! Ela assistia fascinada. No meio de um dos giros, ela notou o seu pai na porta parado vestindo aquele olhar. Carolaine congelou de medo.

"O que você pensa que está fazendo, moleque?"

A boca abriu-se para responder, mas nenhum som saiu, só os olhos suplicavam clemência, compreensão.

"Vou te ensinar a ser homem, Edílson!"

O primeiro soco no rosto partiu seu coração e deixou nos lábios um vermelho sangue que não vinha de nenhum batom, nos olhos roxo, principalmente no direito e um inchaço impossível de disfarçar com qualquer maquiagem. O vestido da mãe, agora em pedaços, jazia espalhado pela sala. Marcas de cinto listravam as costas do menino encolhido no chão da sala. O sangue escorrendo, manchando a cueca branca encardida. Nos olhos vidrados, um brilho de lágrimas.

"Agora pega as suas coisas e some! Eu não tenho filho baitola!" O sargento Souza bateu a porta do barraco.

Nos primeiros minutos, Edílson mal conseguia se mexer. Respirar já era muito difícil. Todo o seu corpo tremia e sua alma sentia uma dor tão imensa que não cabia mais ali dentro. A cabeça latejava com pensamentos desconexos.

"Eu preciso ir," Carolaine sussurrou mansamente.

"Sem você eu vou morrer," Edílson respondeu com dificuldade.

"Eu sei," ela disse como quem pede desculpas, "mas nós dois sabemos que não há outro jeito."

Ele sorriu e fechou os olhos para sempre. Carolaine levantou-se com dificuldade, a visão turva pelas lágrimas não impediu que se despisse da cueca ensanguentada. Caminhou até o pequeno banheiro da casa, ligou o chuveiro, equilibrando-se como podia ao lado da privada. Lá livrou-se do sangue e das lágrimas. Apenas a dor persistia em acompanhá-la.

Calçou um chinelo de dedo, colocou duas camisetas e um shorts em uma sacola de pano e cobriu-se com uma bata laranja da mãe, que de tão grande servia como vestido. Em um último ato de coragem, abriu novamente a gaveta de calcinhas, pegou uma rosa e vestiu.

O sol ainda brilhava quando Carolaine fechou a porta do barraco pela última vez. Ela notou o peso do olhar dos vizinhos, mas não ousou encará-los, apenas seguiu, olhos fixos nos pés, que agora ostentavam esmalte vermelho.

Um caminhoneiro levou-a para a capital e ela não se importou a mão grande em suas coxas, nem o pequeno agrado que ele pediu em troca da carona. Mas a cidade grande não abria os braços para alguém como ela. A realidade das ruas era dura. Os anos passaram, Carolaine ganhou mais cicatrizes no corpo e na alma e aprendeu a se entorpecer para sobreviver.

Chegou mais um dezembro, as pessoas agitadas na Avenida Paulista se preparando para um novo ano. A esperança de dias melhores tremulando no meio do caos urbano. Carolaine já sabia que para ela as coisas nunca mudavam; um empurrão ao abordar um homem para comprar-lhe um xampu lhe lembrou disso.

Timidamente fez nova tentativa, uma mulher de vestido laranja. "Por favor, moça." Algo nela lembrava a sua mãe, talvez o sorriso. Sorrisos eram coisas raras na sua vida e o de sua mãe ainda guardava um lugar nos seus sonhos. "Você pode ir comigo até a farmácia para comprar um xampu? Eu lhe pago dez reais."

"Não precisa me pagar nada. Mas por que você precisa de mim?" A mulher olhou-a nos olhos.

"Ninguém respeita morador de rua, moça. Já me enxotaram de lá, xigando. Eu só queria um xampu ou um sabonete."

"Tudo bem. Vem comigo." A mulher pegou-a pela mão e conduziu até a farmácia. Pararam em frente à prateleira de xampus. "Qual você quer?"

Carolaine correu os olhos pelos frascos coloridos. Ali tinha um de pêssego de uma marca famosa, valeria um bom dinheiro na troca. Ao menos naquela noite, ela poderia se esquecer do mundo e viajar para dentro da sua cabeça. Apontou para a embalagem transparente com tampa amarela. A mulher assentiu com a cabeça e puxou-a até o caixa. Carolaine mantinha os olhos nos dedos dos pés encardidos sem coragem de encarar a mulher do caixa, cujas palavras ainda ecoavam nos seus ouvidos. "Sai daqui, aberração!"

De volta à rua a mulher colocou-lhe a sacola de plástico com o frasco de xampu entre as mãos, olhou-a nos olhos e perguntou: "Qual o seu nome?"

"Carolaine."

"Feliz Ano Novo, Carolaine. Seus olhos tem cor de esperança! São lindos!" Abraçou-a com força. "Que as coisas mudem para você." Sussurrou ao seu ouvido.

Incrédula, Carolaine retribuiu ao abraço. Há tempos não era acolhida assim. Lembrou-se de sua mãe, do colo de quando era pequena. "Para você também." Sorriu, mostrando os dentes comidos pelos maus tratos.

A moça partiu em seu vestido esvoaçante. Caroline admirava a sua graça displicente. "Espere, qual o seu nome?"

A mulher virou-se com um olhar malicioso, "Luiz, mas todo mundo me chama de Lu." Piscou e desapareceu no meio do povo. A multidão de branco dançava ao ritmo baiano, festejando a partida do ano que terminava.

Caroline abriu a sacola e pegou o xampu, avaliando-o. Facilmente o trocaria por uma garrafa de cidra para celebrar o ano novo. Embaixo do frasco, um cartão de visitas. Carolaine franziu o cenho e tirou-o de dentro do pacote. Nele repousava muito mais que número de telefone.

Lu, Assistente Social. Feliz Ano Novo, Carolaine! As coisas podem ser diferentes. Me liga!


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