Dreamer's heart

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Nós somos do tecido
de que são feitos os sonhos.
— William Shakespeare. 



Atravessar a Terra do Nunca à noite era o tipo de adrenalina absurda em que mesmo seu próprio coração batendo chega a ser um problema. Quando tudo é tão silencioso e mortal, o batimento abafado e constante no seu peito, o mesmo sinal reconfortante que em geral garante que você está vivo, se torna o som passível de delato que pode causar a morte do próprio dono.

Que ideia irônica era aquela, Wendy pensava, enquanto caminhava sob a sombra umbranosa de Anthony, a de um coração causar o próprio fim. Se bem que corações traíam seus donos o tempo inteiro. Não seria o ato mais inesperado.

Pelo menos, era o que ela pensava enquanto podia ouvir o coração de Anthony bater, mesmo de onde estava. A única iluminação mínima vinha graças às luas, tantas e tão esbeltas que mesmo a vasta cobertura vegetal não podia cobrir suas forças. Teimosas, elas iluminavam, pintando de azul mesmo a sombra mais escura.

Wendy não se preocupava com o seu coração. Ela o chamava de deficiente, uma espécie de apelido carinhoso mórbido, mas o nome não era muito longe da verdade, afinal. Ele tinha essa personalidade contraída, lenta, constantemente frio, desde que os dois tinham parcialmente congelado. Em geral, era estranho saber que seu próprio coração era mais lento do que o de pessoas normais, mais delicado, mas, nesse momento, enquanto ele batia tão surda e silenciosamente em seu peito, mesmo sob o perigo iminente de uma terra mortal durante a noite, Wendy gostava dele.

Anthony os guiava. Wendy sabia ser bem mais silenciosa que ele e atravessava a natureza com uma proficiência que a deixara agradecida, pela primeira vez, às pancadas do circuito de treinamento — mas ainda contava, infelizmente, com os muitos anos de Ant para guiá-los através da ilha mortal que ela não conhecia, menos ainda durante a noite.

Os passos de Ant eram ruidosos por culpa de seu tamanho e o coração dele era audível como o de um canino bufante, mas Wendy não se incomodava, sabendo que ele podia muito bem lutar contra as outras criaturas com garras que podia acabar atraindo. Ela não. Talvez pudesse, mas não gostaria de testar a teoria. Por isso, mantinha-se como um rastro, sob a sombra enorme que ele projetava, saltando entre os galhos de árvores que podia escalar e evitando as folhagens, constantemente fixa no horizonte, tentando ver areia ou ouvir água.

A Terra do Nunca revelava uma face gêmea e sombria sob a luz das suas luas.

Haviam criaturas rastejantes e formas escuras se esgueirando pela mata junto com ela, algumas observando-os passar como se os medisse. Anthony parecia afugentar os animais menores como um predador de alto porte, felizmente. Haviam insetos de cor fluorescente escalando pedras e misturas híbridas de animais noturnos por toda parte. Olhos luminosos piscavam nas sombras, zumbidos de cigarras forneciam um estranho coral cheio de tons e flores se abriam para as luas, bioluminescentes.

Wendy também ouviu risadas esganiçadas, como hienas em bando, ao longe, o som arrastado pelo vento. De pé em um dos galhos mais altos de uma árvore encurvada, ela só percebeu que não tinha imaginado o som porque vira como Anthony prostrou as garras ao lado do corpo e andou mais rápido, em silêncio. E enquanto saltava para a próxima árvore, Wendy decidiu que não faria perguntas.

Depois de algumas horas nesse compasso, Anthony finalmente fez uma pausa, descansando sobre uma raiz projetada para fora da terra. Eles não se atreveram a conversar, constantemente conscientes dos arredores, e Wendy se perguntou se ele conseguiria escalar uma árvore, talvez das mais fortes, sem muito estardalhaço, para fazer essa pausa. Com certeza, fazia-a se sentir mais segura — e, por mais que os dois estivessem agindo sobre essa redoma de negociação mútua e não afeição, ela ainda queria que ele ficasse seguro. Ou minimamente mais tranquilo.

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