Era mais um dia na friorenta cidade de Manchester. Já haviam sido inúmeras as vezes em que eu pisara o reduto britânico mas, diariamente, confrontava uma coisa nova, pelo que se revelava ser um constante aprender e um aclimatar a uma cidade que, no meu mais ínfimo ser, sabia que ainda tinha tanto para me mostrar.
Não obstante o alarme do meu iPhone encontrar-se, diariamente, ativado, a verdade era que, maioritariamente, o meu relógio despertador possuía uma forma humana dotada de vivacidade e um júbilo matinal que, por pouco, era capaz de destruir o meu característico humor matutino insofrível.
— Colleen, já estou acordada. Podes sair de cima de mim, sua lontra de cinco anos. — Gracejei, escutando, imediatamente, a gargalhada saborosa da minha irmã. Beijoquei-lhe a bochecha e afastei os lençóis, almejando que a sua teimosia e sagacidade pudessem ser amortecidas pelo meu pedido.
— Só porque pediste com o teu jeitinho. — A sua perspicácia e língua torta quase, sempre, me faziam querer mergulhar num ataque de gargalhadas mas era imperativo refrear as mesmas sob o meu domínio ou o membro mais novo da minha família pensaria que o que dizia era correto.
— Sabes que não é assim que se dirige às pessoas, 'Leen. — Evoquei-a pelo carinho epíteto com que somente eu, o meu pai, Michelle e Carter a denominávamos. A menina de louros fios soltou uma risada sapeca, no entanto, acudindo a minha solicitação e recuando ligeiramente, para que me fosse exequível abandonar o conforto do colchão.
No entanto, antes que detivesse a possibilidade de o realizar, um suave toque na porta do meu espaço pessoal constrangeu qualquer um dos meus movimentos posteriores. Concedi autorização, deduzindo que seria o meu progenitor ou a minha madrasta, e que eu apresentava a toda as pessoas como minha "boadrasta" uma vez que a relação que partilhávamos era, indubitavelmente, dotada de união e afeto, como se de uma mãe e filha se tratasse, apesar de eu ter a minha e a amar.
— Bom dia, meninas. — A proprietária de uma clínica dentária procedeu aos usuais cumprimentos, enquanto minimizava o espaço disponível entre nós para dispor um beijo nas nossas faces. — Eu tentei impedir esta macaquinha de vir incomodar-te e deixar que acordasses ao som do despertador mas ela é a forma humana da teimosia. — A sua comparação recreou-me, exatamente, porque era verdade.
— Não te preocupes com isso, Michelle. — Procurei tranquilizar. — Ela é a única capaz de salvar o mau humor matinal e descomunal. — As nossas risadas fundiram-se. — Para além disso, essa monstrinha, hoje, chegou mesmo perto de o meu alarme... — O ruído mais detestável à face desta Terra irrompeu pela divisão, provocando o involuntário suspender da minha fala. — Tocar. — Concluí, logo que silenciei o horário programado para o meu despertar.
— Vá, Colleen, vamos deixar que a tua irmã se prepare para o trabalho. E tu tens de acabar de te arranjar para o colégio, sua pestinha. — A especializada em qualquer espécie de intervenções cirúrgicas orais – a, agora, sua única ocupação no estabelecimento que, ela própria, edificara enquanto profissional na área, naquele que fora um projeto de sonho –, dirigiu-se ao seu segundo rebento, provocando o bufar da mais nova que se manifestava, nitidamente, insatisfeita por deixar a minha companhia.
— Eu já vou, amor. — Asseverei a petiz de que, em breve, voltaríamos aos nossos momentos conjuntos. — Vou só tomar banho e vestir-me e já vamos para a mesa tomar o pequeno-almoço todos juntos.
— Ok. Mas só porque tu disseste e eu acredito em ti. — A sua voz infantil e, certamente, amuada pelo desfecho daquela sua tentativa de permanecer comigo provocaram-me uma frouxa risada. Dispus-lhe um beijo na testa e observei-as abandonar o meu quarto, com Michelle a encerrar a porta atrás de si.
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Senhora de Si | Rúben Dias
RomanceOnde Isaura, tão senhora de si, permite-se ser de alguém que não dela mesma.