— Não queres ir andando? Acredito que estamos a precisar de descansar e amanhã temos um longo dia pela frente com o teu treino, as despedidas e tudo mais... — A voz de Isaura adentrou os meus tímpanos, impelindo-me a movimentar o castanho das minhas órbitas para as azuis dela.
— Tu é que sabes. Quando quiseres ir, podemos. — Dispus-lhe a responsabilidade final nas suas mãos, outorgando-lhe a decisão. Um breve sorriso moldou-se nos meus lábios quando observei a sua expressão alegre desvanecer e que era, por razões óbvias, provocada pelo iminente adeus que iria entregar, novamente, aos seus. — Lembra-te que estás quase a estar, novamente, com eles. E qualquer coisa, acredito que estarão em Manchester num ápice.
— Para colocares a minha avó dentro de um avião, só de grua. — Mordi ao de leve a bochecha, de modo a conter a gargalhada que, pela sua afirmação, queria evadir-se por entre as minhas cordas vocais. — Juro-te. Desde que o meu avô faleceu que a mulher prefere a sua casa a qualquer outra coisa. Fechou-se imenso... — A diversão no tom da sua voz dissipou-se para ser substituída pelo pesar, não só pelo desaparecimento definitivo em termos físicos do progenitor da sua mãe mas, também, pelo natural impacto que o mesmo exercera na mulher mais velha.
— É normal, Isaura. O teu avô foi o companheiro de todas as aventuras da vida da tua avó. Deu-lhe a tua mãe e a tua madrinha, juntos, criaram-nas e quando cada uma decidiu escrever o seu próprio livro, os teus avós voltaram a ser a grande âncora um do outro, quando, até então, tinham-no sido para as filhas. E apesar de não estar sozinha, é natural que se sinta dessa forma mesmo pois o teu avô deixou um vazio que nunca ninguém será capaz de preencher.
Consegui observar pela sua faceta que embebia as minhas palavras e, sobretudo, compreendia-as. Também uma parte de mim estava ciente de que lhe despontava uma consequente tristeza pela ausência de uma das figuras mais imprescindíveis da sua, ainda curta, vida.
— Por isso mesmo gostava de a ter mais perto de nós. Para que pudéssemos ajudar a atenuar um bocadinho da solidão que sente apesar de, tal como tu acabaste de referir, nunca sermos capazes de o dirimir. Pelo menos, completamente...
— Acredito que o façam através do que já fazem por ela e com ela. Cada um tem o seu processo de luto e a sua forma de lidar com a ausência de outrem. Acredito, perfeitamente, que a tua avó está bem e feliz, não obstante não sentir-se, diariamente, assim. Nem nós, pessoas com menos idade, sabedoria e perdas, nos sentimos todos os dias felizes e contentes desta vida.
— Já pensaste em ir para orador, depois de te reformares do futebol? É que tens um discurso como nenhum outro. — (Sor)ri com a sua sugestão.
— Não quero ainda pensar, sequer, nessa realidade de abandonar por definitivo os relvados. Ainda tenho mais de dez anos pela frente. Acredito que quando a altura chegar, e até lá cultivarei experiências e momentos, que me ajudarão a perceber qual o meu próximo passo.
— É o que eu digo. Feito para ser orador inspirador dos mais jovens. — Voltei a soltar uma frouxa risada.
— Não digo nada de mais. — Exibi um erguer dos meus largos ombros, no entanto, grato pelos seus elogios.
— Falas aquilo em que acreditas e isso por si só já se torna bonito de se ouvir e de se querer reter. De nos sentirmos inspirados.
— Sentes-te inspirada com o que digo? — Testemunhei o instante em que as maçãs do seu gracioso rosto foram brindadas com uma tonalidade distinta da sua característica, o que me fez liberar uma fraca risada, dotada de um nível claro de satisfação.
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Senhora de Si | Rúben Dias
RomanceOnde Isaura, tão senhora de si, permite-se ser de alguém que não dela mesma.