Capítulo #10: Aquele sobre a melhor amiga

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Sugestão de música: Vou morrer sozinho - Jão

No auge dos meus 19 anos e sem jamais ter apresentado alguma pessoa importante em minha vida para grande parte dos meus conhecidos (considerando que Davi, alguns amigos virtuais e meu antigo melhor amigo de igreja conheciam algumas das minhas tentativas de romance), comecei a ser cobrado e, mais uma vez, importunado por meus familiares sobre não ter ninguém ao meu lado. Minha vida já parecia marcada pela trilha sonora de "Vou morrer sozinho", como o próprio videoclipe de Jão, cheio de belos romances destruídos e corações devastados.

Dessa forma, meus parentes mais chatos (e, obviamente, aqueles que não tinham a menor ideia sobre minha verdadeira falta de interesses sexuais, principalmente em mulheres) decidiram voltar a me importunar para estar em um relacionamento com Vitória, a garota que era minha melhor amiga desde que me entendia por gente.

Vitória sempre foi como uma irmã para mim, e meu pai sempre foi como parte da família dela também. Claro, o padrasto dela odiava o homem que me dera a vida, pois sempre desconfiara da verdadeira relação entre ele e a mãe de minha amiga. Nós sempre fomos muito unidos, principalmente nos períodos em que moramos ao lado da casa de Vitória e quando nos tornamos adolescentes, em especial nos momentos de participarmos das atividades da igreja.

Assim como eu, Vitória sempre sentiu uma conexão muito mais forte como irmão do que qualquer outra coisa. Na verdade, uma atração sexual nunca foi questão entre nós, era quase como se isso nem fosse uma possibilidade de existir (eu vi em um vídeo sobre um negócio que, depois de certa conexão com uma pessoa, você simplesmente para de vê-la como possível interesse romântico, e essa é exatamente a sensação que tenho com Vitória), mas nem todas as pessoas ao nosso redor viam isso.

Não era incomum ouvirmos piadas como "vocês falam isso, mas ainda vão se casar", "vocês formariam um belo casal" ou "sério que você realmente não gosta dela?" e outras piadas tão desnecessárias quanto aquelas feitas sobre os corpos dos outros.

Estar perto de pessoas que pensam dessa forma é exaustivo até para nós, que sempre tentamos ser totalmente pacientes e tolerantes em relação a isso. Não era fácil, então, depois de alguns anos, nós simplesmente desistimos de tentar entender ou responder a esses comentários inúteis.

Tudo bem, preciso confessar que, naquele período, eu tive um sonho totalmente estranho com Vitória. Nele, nós dois tínhamos um casamento de fachada e, logo depois da cerimônia, cada um ia para um lado com seu verdadeiro cônjuge (no meu sonho, é claro que era Murilo, enquanto ela estava feliz ao lado de Rodrigo).

Apesar de tudo, era bom conversar com Vitória sobre minhas relações. Primeiro de tudo, porque, na maior parte do tempo, ela nem se dava ao trabalho de ouvir ou tentar me aconselhar nas minhas dores. Segundo porque ela nunca se mostrou intolerante por meus pensamentos homossexuais, apesar de termos sido criados em famílias meio homofóbicas e totalmente religiosas. Terceiro porque ela foi uma das primeiras pessoas com quem me abri sobre ser assexual.

O verdadeiro problema de Vitória eram os momentos em que ela se apaixonava. Quando isso acontecia, era só ladeira abaixo e meu ouvido se tornava um verdadeiro penico para ouvir todas as suas reclamações. E não tinha assunto capaz de distrair a mente dessa garota, nem mesmo as minhas estranhas peripécias afetivas. Eu sempre adorei conversar com ela, mas nesses momentos era quase missão impossível!

– Então, Vik, se lembra do que eu te disse sobre aquele garoto, o meu primeiro amor?

– Na verdade, não, mas pode continuar – sempre estamos dispostos a ouvir fofocas, certo? Mesmo que sem sabermos das personagens principais.

– Descobri que estou apaixonado, e é tudo tão confuso porque... – rápida mudança de assunto pois um cachorro passara na nossa frente enquanto caminhávamos pela rodovia.

– Nossa, sabe o que eu lembrei? Esses dias eu estava caminhando e vi um cãozinho sendo atropelado. Fui contar para o Rodrigo e acredita que ele quase chorou?

Rodrigo era o interesse romântico de Vitória naqueles meses. Eu já estava cansado de ouvi-la falando sobre esse garoto. Mesmo conhecendo os dois, ainda não conseguia entender o que realmente se passava na cabeça de cada um. Nenhum dos dois parecia querer ter a iniciativa de oficializar (ou mesmo de tentar estar juntos), eram uma enrolação enorme e eu nem sabia como agir nessa sinuca de bico.

Nosso amigo falava pouco sobre Vitória, mas o romance entre os dois era bem óbvio quando estávamos juntos e eu me sentia a maior vela do rolê, ainda que eles nem se conversassem direito em certos momentos. Nunca entendi exatamente essa relação, mas eu estava feliz por eles e esperava que se encontrassem, fosse como casal, fosse como amigos do peito (ou coloridos, vai saber).

Antes de Rodrigo, Vitória tinha sido apaixonada por Lucas, um grande amigo do segundo crush dela. O término desse relacionamento também foi dolorido e conturbado, e ela passava horas chorando as pitangas por conta do ex. Eu, como o ótimo amigo que sempre fui, estava lá por ela.

– Eu ainda não entendo o motivo de Lucas ter terminado comigo! Sério, acredita que ele não me deu nenhum motivo para isso, só acabou tudo e tchau

– Ai, Vik, talvez você precise dar um tempo, sabe? Vamos tomar um sorvete no centro para dar uma acalmada nas ideias?

– Podemos ir à sorveteria perto da academia? É que o Lucas costumava ir comigo àquela perto do colégio, mas não quero passar por lá.

Acima de qualquer coisa, fosse interesse romântico, fosse conversas sobre a faculdade, eu amava a companhia de Vitória. Além de ser a pessoa que me conhecia desde criança, ela também era a pessoa com quem eu sempre soube que poderia contar. Ela era para o que desse e viesse, ainda que talvez demorasse um pouco mais nos dias em que estava apaixonada (mas jamais me deixaria na mão).

Não dá para julgar, afinal todos nós temos esses momentos, não? Períodos em que decidimos dar mais atenção aos nossos romances do que aos nossos amigos, e não tem mal nenhum nisso, a não ser nos dias em que abandonamos nossas amizades em nome de algum relacionamento afetivo (coisa que ela jamais fez). E devo confessar que toda essa minha insegurança era devido ao medo de perder minhas amizades, mesmo sabendo que Vitória e Rodrigo jamais fariam isso comigo, ainda mais quando éramos o trio mais unido de todos os jovens de nossa congregação.

De qualquer forma, fiquei superfeliz e orgulhoso quando Vitória me contou que passara na faculdade com que tanto sonhara durante a vida. Quando já estava em outra cidade havia mais de dois anos, ela e Rodrigo finalmente se entenderam e decidiram ficar juntos de verdade. Mesmo com a longa espera, compartilhei da alegria deles ao vê-los apaixonados e sempre com aquele sentimento delicioso de início de namoro.

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