intitulável

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papai não sumiu da face da terra
depois de sair dizendo
que precisava esfriar a cabeça
papai sempre esteve lá todas as noites
depois de chegar do trabalho
imóvel em frente a tv
como um devoto diante de seu ídolo
porque a vida por trás das
telas lhe parecia mais vivida do
que a que ele tinha
ao seu lado no sofá
sentado com as sobras do
jantar que não preparou
repousando em seus
lábios secos e mudos que só
serviam para perturbar
e perguntar sobre as
despesas e a
próxima refeição

papai agia de forma tão infantil
mesmo já tendo meio século
me levando a amadurecer mais rápido
para terminar de criá-lo
ao mesmo tempo em que ele
também agia de maneira tão pouco
inocente quando não havia
ninguém vigiando
o seu caráter

papai nunca traiu mamãe
mas ele também nunca foi fiel
embora ainda me seja um
mistério a razão pela qual ele não construiu
uma nova família depois de bater
a porta e ligar o carro sem dizer oi nem tchau ou para onde ia ou
a que horas voltaria
acho que talvez por comodidade
em saber que iríamos
continuar a esperá-lo voltar sem
descontar nada do seu salário
pelo atraso nem colocá-lo
no olho da rua por
qual passou

papai esmurrava
paredes e janelas quando ficava
irritado e eu me perguntava
se ele nos imaginava no lugar daquele objeto inanimado
descontando ali a raiva
que não descontaria na gente
talvez por isso fico assustada
facilmente ao mínimo
sinal de brutalidade repentina
inquieta ao ouvir gritaria
vindo do outro
lado da porta

pra falar a verdade
papai não me parece tanto
uma figura paterna
embora isso não faça dele
menos meu pai
mas também não o faz
ser mais o que deveria
como um porto não tão seguro
como um homem
que deveria ser meu tudo
minha confiança e
meu escudo
mas garanto que o amo
do jeito que ele é
falo a verdade
o amo infinitamente e de
todo coração
o amo porque não
posso evitar
eu só não gosto
dele