Era o aniversário de 19 anos de Sofia. Ela tinha algumas amigas de sua antiga escola em seu grupo de Whatsapp, mas nesse ano preferia não convidar ninguém — com exceção de uma pessoa, é claro. Ao acordar, decidiu checar seu celular. Muitos estavam mandando os parabéns. Ela clicou inicialmente no grupo que mais lhe importava:
[08:06h] Eduardo: Oi, gente. Preciso de ajuda em uma coisa…
[08:17h] Clarice: No quê?
[08:18h] Eduardo: Te chamo no privado.
[09:13h] Ariel: Gente, hoje é aniversário da Sofia!
[09:14h] Oscar: Nossa, eu tinha até me esquecido… Vou mandar os parabéns no PV
[09:36h] Simone: Que vergonha, esquecer o aniversário da própria amiga…
[09:40h] Oscar: Nem vem que eu sei que vc não sabia!
[09:41h] Simone: Eu?!
[09:42h] Oscar: Vc é a pior pessoa do mundo pra lembrar datas
[09:43h] Simone: Por isso existe o calendário!
[09:44h] Oscar: Calendário não vale!!
[10:00h] Eduardo, respondendo a Ariel: Nossa, não sabia. Mil desculpas @Sofia, e parabéns!
[10:02h] Clarice: Vai ter festa?Sofia ria até ver essa última mensagem, de Clarice. Decidiu voltar para a tela inicial sem responder. Depois, respondeu a todas as felicitações, no Facebook e no Whatsapp.
Por fim, sua mãe entrou no quarto, carregando uma bandeja:
— Oi, filha!
— Mãe…
— Parabéns, viu?
— Obrigada!
— Você precisa ir preparando a festa. Já convidei algumas pessoas…
Sofia se desapontou. Realmente, iria ter festa.
Quando respondeu Clarice, imediatamente recebeu uma mensagem:[10:12h] Clarice: Vai ter muita gente? Eu trago o champagne
[10:15h] Sofia: Não quero convidar muita gente, e adoro champagne
[10:16h] Clarice: Só tenho que ver como voltar pra casa bêbadaSofia riu levemente, antes de desligar. Estava chateada. Sua vida sempre foi rodeada de festas, paqueras e baladas, mas às vezes sentia que nada daquilo era, de fato, para ela. A verdade é que, desde 2020, estava muito apegada a um amigo de infância, que foi um dos únicos suportes emocionais durante suas fases difíceis. Fechou os olhos, deixou cair uma lágrima e repetiu docemente o seu nome. Ariel.
Chegaram as 18 horas. Seria uma festa noturna, como sempre. Ariel foi a primeira a chegar. Sofia ruborizou quando viu-o acenando para ela. Respondeu o cumprimento timidamente. De imediato, Ariel foi abraçá-la.
— Parabéns, Sofi.
— Obrigada, Ariel.
— Quem vai vir pra essa festa?
— Eu não sei muito bem… Deixei isso com a minha mãe.
— Ah, entendo.
Os dois foram até o quarto de Sofia e sentaram na cama. A aniversariante sentia seu coração pulsar fortemente e quase sair pela boca. Ofegante, disse:
— Obrigada, Ariel.
— Pelo quê?
— Por ser o amigo que você é — Abraçou-o enquanto lágrimas saíam de seu rosto. — Eu vejo tudo o que você passou, e me interesso demais, porque… esse tipo de relato me ajuda, me faz sentir viva, me diz que eu não tô sozinha…
Ariel ficou sem reação, inicialmente. Contudo, depois de um tempo, sua face pasma se converteu em um sorriso meigo e seus braços cobriram a jovem, que chorava no seu colo. Depois de parar, Sofia estendeu a cabeça para o amigo e penetrou em seus negros olhos. Conseguia sentir a respiração e o calor corporal de Ariel. Avançou para perto dele, que arregalou seus olhos, em surpresa. Contudo, Sofia teve medo, e reprimiu o que acabava de fazer, imediatamente retornando à posição inicial. Ele ficou chocado, mas decidiu mudar de assunto:
— Como você está nesses últimos dias?
— Um pouco perdida e confusa.
— Se você quiser, eu sempre vou estar aqui, te ajudando no que for possível.
— Muito obrigada… Muito obrigada mesmo.
— Não tem de quê…
— Eu… tenho me sentido muito insegura, você sabe? Porque as pessoas vem tentando me encaixar como lésbica ou hétero, mais agora do que antigamente… Você deve entender…
— Eu te entendo muito, Sofia. Eu confesso que achei que a minha intersexualidade era uma doença, de início. Tentei mudar, fazer tratamento… mas eu era infeliz, porque esses detalhes únicos meus são como eu sou. Eu me cortava, acho que já contei isso pra você, mas… era horrível. E tinha um menino, na minha escola, que ficava me assediando… muito. Dizendo que eu devia me “consertar”, sempre olhando com más intenções pra mim… Teve um dia em que ele… — começou a chorar. Sofia ficou espantada. Nunca tinha visto Ariel chorar.
— Ariel, se você não se sentir confortável…
— Ele me fetichizou.
Os dois se abraçaram. Ela acariciou os longos cabelos do amigo, enquanto consolava seus choros pranteados. Em um momento, em meio de tanto pesar, dormiram aconchegados um no outro.
Sofia acordou com a campainha. Ruborizou de tanta vergonha, correndo imediatamente para a porta da frente, antes que Ariel acordasse. Abrindo a porta, viu Eduardo, sorrindo.
— Oi, Eduardo!
— Oi, Sofia! Fui o primeiro a chegar, de novo?
— Não, a Ariel chegou antes.
— Ah, que bom! Eu propositalmente vim um pouco mais tarde…
— Vi que você tem um carro!
— É, meu pai me deu assim que eu terminei a auto-escola…
— Que chique!
— Obrigado — disse, desconcertado.
Dentro de pouco tempo, veio Clarice, animadíssima e provavelmente bêbada. Seguidos dela, muitos desconhecidos e conhecidos vieram, incluindo os participantes do grupo de amigos e os familiares da aniversariante. Ela recebeu muitos beijos e abraços, muitos presentes, mas continuava levemente insatisfeita, pois queria Ariel, e somente Ariel.
Com o tempo, contudo, o pior se revelou: Rafaela, sua desprezível colega, comparecia à festa. Gabriel, o namorado de Clarice, também. Ao vê-los entrando, um de cada vez, mas principalmente Rafaela, exigiu explicações de sua mãe.
A pobre senhora, contudo, não sabia que a filha tinha ódio pela colega, e havia convidado a garota achando que ela era uma amiga de colégio. Sofia enfureceu-se inicialmente, mas gradualmente converteu sua raiva em tristeza, sabendo que aquele evento se tornaria um caos.
Enquanto isso, Clarice estava pasma ao ver seu namorado tóxico invadir o local. Imediatamente, exclamou:
— Gabriel, pelo amor de Deus, o que você tá fazendo aqui?
— Fiquei preocupado com você saindo a essa hora da noite. Achei que estivesse me traindo… Errei?
— Errou!
— Então por que a gente tá num puteiro?
— A gente não tá… Meu Deus, que bafo de álcool! Você fica o dia inteiro bebendo cerveja só pra falar merda na minha frente!
Heitor quis repetir o ato de seu aniversário, mas foi impedido pelos amigos. Gabriel parecia mais agressivo do que o normal.
Dentro de segundos, o marmanjo saiu de cena com uma lata de cerveja quente na mão, decidindo ficar no local, mas escondido em um canto. Enquanto isso, Rafaela socializava com os convidados da festa. Ela avançou para Pedro:
— Oi! — falou alto, pois estava aparentemente curiosa e surpresa…
— Oi, aconteceu alguma coisa?
— Não, eu só fiquei um pouco surpresa…
— Com o quê?
— Nada, é que… — Pensava na melhor forma de dizer. — Bom, você é o único negro daqui…
— Ah… É, eu acho… Mas tem o meu irmão, também…
— Como vocês conheceram a Sofia?
— Bom, ela tem um amigo e… ele nos apresentou.
— Ei, ei, olha pra mim!
— Ah, moça, desculpa, é que eu sou cego…
— Ah, nossa, que triste! Você nasceu assim ou perdeu a visão?
— Nasci assim…
— Que bom, perder a visão deve ser pior.
— Moça… — falou, desconcertado. — …Não tem coisa “pior” ou “melhor” se tratando disso.
— Pedro? — Heitor, que passava por ali, interveio.
— Heitor! — disse Rafaela. — Uau, você é uma menina?
— Pedro, vamos embora daqui… — Heitor estava claramente desconfortável.
— Esperem! Heitor, você operou? Como foi trocar o seu gênero? — Os dois ignoraram a garota e foram embora.
Heitor levou Pedro para um recanto da casa, sigiloso e vazio. Lá, se abraçou no irmão enquanto chorava compulsivamente:
— Eu não entendo… O que eu fiz, nós fizemos, pra merecer isso? — disse Heitor, enquanto as lágrimas eram expelidas de seu rosto. — Por que nos tratam como anomalias porque somos negros, porque você é cego e eu sou trans… Qual é a dificuldade de deixar a gente em paz?
— Se acalma, Heitor… Se acalma. Eu sei que é difícil, dificílimo viver assim, mas… infelizmente, existem muitas pessoas como aquela garota no mundo. Eu sei o que você passou, eu ouvi e te abraçei em todos os seus desabafos sobre as dificuldades da transição, e eu queria muito que o mundo mudasse de repente, mas… não vai. Nós continuamos tendo que protestar, que exigir nossos direitos, mas sempre mantendo em mente que muitas vezes não vai dar certo, e nós vamos continuar sendo oprimidos. Por isso, o que podemos fazer é fugir de problemas, pedir igualdade e torcer pra que um dia isso mude.
Heitor lentamente se acalmou, respirou fundo e enxugou as suas lágrimas. Deu o braço ao irmão, e os dois retornaram à sala de estar. Oscar e Eduardo estranhamente não estavam presentes. Heitor notou isso e decidiu perguntar para Clarice. Contudo, viram que ela estava transtornada.
— Clarice? — indagou Heitor.
— Ah… o Gabriel começou a perseguir o Oscar e o Eduardo porque viu eles de mãos dadas — Chorou. — Eles entraram no carro do Eduardo e fugiram.
— Nossa, que babaca…
— A Simone e o Ariel também foram embora depois disso. A Sofia ficou desolada e se trancou no quarto… Enfim, eu tava esperando vocês pra gente sair juntos.
— Clarice, vem jogar verdade ou consequência! — disse Gabriel, quase caindo no chão de tão bêbado.
Pegou a namorada pelo braço e a levou, contrariada, para a roda, onde começaram a girar uma garrafa no centro. Enquanto aqueles energúmenos se esbanjavam sobre questões sexuais e desafiavam sexualmente os outros, Clarice só podia pensar no quão deslocada ela se sentia sobre tudo aquilo. Por anos assistiu aos desenhos animados e contos de fada, sempre esperando pela parte inexistente onde a princesa abandonava o príncipe e se tornava independente. Ao crescer, teve que presenciar as acusações sáficas contra a sua pessoa, mas principalmente a pressão dos pais e amigos para arrumar um namorado. Se lembrava naquele dia em que Gabriel começou a assediá-la, e ela decidiu se render para ele. Ela se sentia uma covarde. Sentia que sempre tentava encaixar no padrão, cedendo aos desejos dos outros e não aos seus próprios. Por isso, quando a garrafa acabou apontada para ela e perguntaram “Verdade ou consequência?”, ela chorou, levantou-se e correu para fora, imediatamente saindo do local com o seu carro, levando Heitor e Pedro consigo.
Estava cansada, com dor de cabeça porque havia bebido um pouco no início da festa, mas não queria ficar ali de jeito nenhum. Largou os amigos na casa deles e esperou para que eles entrassem totalmente, enfim decolando para o seu apartamento. Queria esquecer imediatamente aquela noite.

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A Modos
RomanceOscar Andrade é um jovem poeta, maltratado pela vida. Eduardo Carvalho é um aspirante a músico, introspectivo aos excessos. Quando ambos se conhecem, um laço se forma entre os dois, que se estende aos seus amigos. Capa por Ester Araujo. Novos capítu...