[Aviso de gatilho: Perseguição].
Eduardo acordou às 8h. Trocou-se rapidamente com a roupa que trouxe de casa, pois se sentia constrangido naquele pijama. Enquanto seu erasta não acordava, passou a ler. Budapeste.
9h16. Oscar acordou e intimidou-se ao perceber a presença do namorado. Tirou seu pijama e escolheu uma nova vestimenta. Eduardo desviou os olhos.
— Não precisa desviar os olhos. Eu não me sinto desconfortável.
— Ah… — Passou a observar o corpo do parceiro, nu, até que se vestisse novamente. Suas bochechas se assemelhavam dois pequenos tomates de tão ruborizadas. Mas, ao mesmo tempo, não conseguia escapar o olhar. Aquele corpo era majestoso.
— Pronto — disse Oscar, ao terminar o processo. — Foi boa a espionagem?
— Ei! Você permitiu! — Ambos riram.
Nutriram-se com o café da manhã, escovaram os dentes, lavaram o rosto e imediatamente partiram, no carro de Eduardo. Naquele dia, reuniriam-se com os outros amigos para comemorar o aniversário de Oscar.
Chegaram após um longo período — afinal, estavam indo para outro bairro — no parque em que pretendiam. Estava relativamente calmo. Isso agradou os parceiros.
A brisa onduzia os dois acompanhantes ao fluxo divino de Éolo. As árvores inquietas moviam seus galhos, que sustentavam em si folhas quebradiças, mas vívidas. A grama ostentava uma cor exuberante e tangível, tal qual sua superfície única, que causava uma impressão inigualável naqueles que andassem descalços. Pela sombra de uma árvore, viram os amigos, cada um carregando uma porção de comida, todos conversando. Eduardo pegou uma toalha que tinha e desenrolou-a pelo chão, enquanto Oscar organizou as comidas de todos por cima da toalha. Eles, enfim, sentaram, formando uma roda de piquenique.
— Finalmente! — bradou Clarice. — Demoraram uma eternidade.
— Ele me enrolou! — retrucou Oscar. — Por sinal, Clarice, por que você não veio ontem?
Clarice esquivou os olhos e converteu sua face em tristeza. A brisa começou a intensificar-se levemente. As folhas das árvores moveram-se mais rápido.
— Me desculpa por não ter ido — murmurou. — Prefiro não falar sobre isso.
— Tudo bem — respondeu Oscar. O clima estava tenso.
— Bom, vamos comer? — disse Pedro. — Estou faminto!
Converteram sua face em alegria e degustaram o banquete.
Estava sensacional. O frango assado, trazido por Ariel, era de longe o mais gostoso. Estava quente, mesmo tendo sido trazido de uma distância considerável. A carne do frango era macia, confortável e suculenta, o que contrastava com a crosta de pele que se avultava por fora, crocante e saborosa. Perfeito. Pedro foi, decerto, o que mais saboreou o prato. Depois de diversas mordidas, lambeu seus lábios engordurados e exclamou:
— Mas esse frango é maravilhoso!
— Obrigada — disse Ariel, corando.
— Ariel, foi você que fez? — perguntou Oscar, surpreso.
— Bom, sim.
— Ele é um cozinheiro maravilhoso! — falou Sofia.
— Não sou, não sou!
— É sim! Para com essa falsa modéstia, amor!
O resto do grupo ficou confuso, com essa última afirmação. Os dois que conversavam, sem se atentar a isso, deram as mãos. Agora, tudo estava claro.
Outro prato que chamou a atenção de todos foi o de Clarice. Ela, para inovar, trouxe camarões. Oscar, em certo ponto, notou isso, perguntando:
— Camarão?
— É. Decidi inovar.
— Estão muito bons! — disse Simone.
— Adoro camarão! — falou Sofia, que só agora notava o exótico prato.
— Ah, sou alérgico a frutos do mar. Dessa vez eu passo — esclareceu Ariel, entristecido.
— Nossa, verdade — conotou Sofia, enquanto se empanturrava de camarões. — Tenho pena de você, Ariel.
— Sofia? Você vai comer todos os camarões! E depois eu que sou a gulosa! — brincou Simone.
— Camarão é o meu ponto fraco, Simone!
— Deve ser muito bom mesmo… — interveio Ariel.
— Deve ser ruim não poder comer camarão — respondeu Eduardo.
— Bom, é difícil, especialmente pra mim. Sempre gostei muito do mar. Não é à toa que tenho esse nome — Ariel riu. Clarice olhou para ela, surpresa.
— Bom, eu tenho medo do mar — disse Pedro.
— Medo? Mas por quê? — perguntou Eduardo.
— Bom, a superfície do mar é estranha, e o barulho também é assustador. Não dá pra saber direito o que se esconde sob o semblante adooso do oceano…
— Pedro? Você pegou síndrome de Eduardo? — perguntou Oscar.
— Ah. é só falta de interação! — respondeu, rindo logo depois.
— Ei! Oscar! O que você está querendo insinuar? — indagou Eduardo.
— Não insinuei nada, só constatei fatos.
— Cala a boca!
— Ei, Ariel! — interrompeu Clarice. — Que história é essa do seu nome vir por causa do mar?
— Bom, eu sempre fui fã da Pequena Sereia, meu filme favorito até agora. E, conforme eu crescia, me identifiquei muito com a Ariel, essa tentativa de fugir da realidade opressora em que ela estava… Eu me apropriei do nome dela, quando me assumi.
— Ah, meu Deus! O seu nome é por causa da Pequena Sereia, eu vou infartar! Esse filme é perfeito! — Clarice quase gritava.
— Hahaha, é mesmo! — Ariel manuseou seu cabelo.
— Duvido alguém dizer que a minha namorada não tem bom gosto — interveio Sofia, ainda com alguns camarões na boca. — Ele é perfeito. Me apaixonei assim que ele deu essa explicação do nome dele.
— Sofia, eu te expliquei o meu nome faz uns oito anos!
— Exatamente — Sofia corou.
A conversa morreu, por um tempo. Depois de alguns minutos, Heitor perguntou:
— Oscar, você tem pensado na faculdade?
— Bom, tem sido o centro da minha vida recentemente.
— Se prepara, vai ser horrível — disse Simone.
— Ah, mas eu sei bem — Riu.
O grupo continuou a conversar sobre diversos tópicos, até que o céu nublou-se rapidamente, o vento intensificou seu volume e o dia começou a esvair na noite. Por isso, decidiram partir.
— Eduardo, me espera no carro. Eu vou ver uma coisa — disse Oscar, quando todos já partiam. Caminhou até Simone, que andava sozinha, com os braços cruzados. Vendo o amigo passar, imediatamente sorriu.
— Oi, Oscar — falou ela.
— Oi, Simone. Eu queria saber sobre…
— A Luiza? Não se preocupa, tá dando tudo certo. Eu ainda não consegui me confessar, mas o que antes era uma ideia distante, agora tá se tornando uma possibilidade.
— Nossa, fico muito feliz por você! — Abraçou-a. Ela chegou a chorar de emoção sobre o ombro do amigo. Com o tempo, os dois se despediram e Oscar partiu.
Clarice foi para a casa apreensiva. Desde o fatídico dia da separação, Gabriel não parava de persegui-la. Ela andava com medo de ser atacada pelas costas e morrer, temia por sua própria segurança a cada momento que estava sozinha, e temia pela segurança dos seus amigos e familiares quando estava próxima deles. Seu ex-namorado se tornara um espectro, que rondava sua vida e a atormentava constantemente, por longos períodos de tempo. Ela queria apenas livrar-se daquela visão escabrosa que tinha dele, e, para isso, precisaria se anestesiar o máximo possível com as situações supérfluas do dia a dia.
Preparou um punhado de pipoca. A paranoia dominava seu corpo e fazia seu coração pulsar. A cada momento, sentia a presença da figura sobre si. Queria fugir. Queria correr. Mas não importava para onde fosse, para onde fugisse, para onde corresse, sempre se sentiria perseguida — até porque estava, de fato, sendo perseguida.
Às 23h47, enquanto Clarice tentava se distrair com a enorme tigela de pipocas em seu colo, ouviu a campainha zumbir pela sala de estar. Nesse momento, engoliu saliva. Quem seria, e àquela hora? Por quê? Quais eram seus intuitos? Essas perguntas estouram em sua cabeça, e não permitiram-na paz para, enfim, atender a porta.
Com um otimismo revigorante tentando tomar-lhe a cabeça, tirou seu cobertor roxo do corpo e prosseguiu até a entrada, sob palidez e tremulação, num estado de mais profunda angústia por enfrentar um inimigo desconhecido — e que ela temia saber quem era.
Observou o olho mágico. Em um segundo, sentiu seu coração pular pela boca. Gabriel estava ali, parado, persistente, normal, como se nada tivesse, de fato, acontecido. Ela não conseguiu reagir ou pensar, decidindo apenas se afastar da porta enquanto respirava ofegante e começava a entender o que se passava. Gabriel. Ele estava ali. E ela teria de enfrentá-lo, de vê-lo, se não quisesse uma reação agressiva. Não queria aceitar isso e, portanto, começou a ofegar, suar e chorar, berrando esporadicamente e quase se desestabilizando, não fosse o apoio feito pela perna do sofá.
Sentindo a visão ofuscar-se pelo medo e os sentidos se renderem à incerteza, decidiu correr até a bancada para beber um copo d’água — afinal, só podia estar alucinando, e precisava pensar de forma racional. Esse pensamento confortou seu medo intenso, que só se afiava com o passar do tempo, e ela conseguiu realizar a tarefa.
Contudo, conforme engolia a cristalina água da calma, um pensamento mórbido dominou todo o seu alívio quando ouviu Gabriel bater na porta e dizer “Clarice”. Agora ela tinha escutado a voz dele ressonar nos tímpanos, e não podia negar a si mesma a dura verdade que apresentava-se-lhe: Era, de fato, Gabriel. Pela metade do copo, largou-o no chão e viu-o espatifar-se, enquanto vomitava toda a sua dor e o seu desalento na bancada, num eterno processo em que o nojo se unia ao pavor pela temerosidade amarga do pior.
— Clarice, abre a porta. Eu sei que você tá aí.
Clarice ficou muda, com o celular na mão, prestes a ligar para a polícia. Podia não ser nada, mas podia ser tudo. E, em um instante, ela ouviu o grunhido esbravejado de Gabriel, tentando arrombar a porta. A jovem tremeu. Um guincho de dor acompanhou as lágrimas que se expeliam de sua face.
Rapidamente, guardou seu celular no bolso e se estabilizou. Viu a gaveta da bancada, ainda suja pelo verde do vômito, abrir-se e oferecer-lhe uma faca afiada e intacta. E, já se aproximando das escadas com o objeto na mão, pôde observar a porta cair subitamente e o corpo de Gabriel estar ali, sem absolutamente nenhuma limitação até o seu senão poucos passos.
Percebendo a proximidade horrorosa da ameaça, suas pálpebras rodopiaram pela sua face, enquanto que o regozijo da esperança foi completamente dominado pela face do medo. Irracionalmente, largou a faca no chão e gritou um dos gritos mais profundos que daria em toda a sua vida, senão o mais profundo, que podia expressar com prontidão uma ansiedade incomparável encrostada no âmago, causada pelo medo infalível de morrer. Correu pelas escadas até um esconderijo seguro.
23h53. Clarice se trancou em seu quarto e começou a ter falta de ar. Seu coração pulsava eloquentemente. Ela pegou o celular do bolso e, com as mãos estremecendo, ligou para a polícia. Do primeiro andar, pôde escutar os passos de Gabriel, até o momento em que ele pegou a faca do chão e começou a subir as escadas. O pavor consumia a garota.
23h54. Uma voz foi ouvida do celular.
— Boa noite, delegacia de polícia.
— Moço, moço, por favor, tem uma pessoa na minha casa!
— Se acalma, senhora. A pessoa está armada?
— Sim, ela tem uma faca.
— E onde a senhora está?
— Trancada no meu quarto, que fica no segundo andar. Ele tá chegando cada vez mais perto, por favor, eu tô com medo.
— Acalme-se. Mandaremos uma viatura agora mesmo. Me diga o seu endereço.
— Rua Eldorado, número 26. Por favor, venham logo.
— Vamos chegar, senhora. Enquanto isso, não saia do telefone, certo?
— Certo.
23h55. Clarice continuava dando informações sobre a casa, sussurrando para não ser ouvida. Enquanto isso, Gabriel espreitava todos os cômodos da casa. Explorou minuciosamente o banheiro, até constatar que ela não estava lá.
23h56. O agressor partiu para o quarto de hóspedes. A vítima se desesperava, esperando com todas as suas forças para que não fosse encontrada.
23h57. Chegou a vez do agressor investigar o quarto de Clarice. Ela gelava de medo.
23h58. Gabriel a viu, desesperada, tremendo no recanto do local, com o celular na mão.
23h59. Ele se aproximou da garota, enquanto ouvia o som do policial:
— Alô, senhora?
Ergueu sua faca contra ela, logo derrubando e quebrando o celular. Posicionou suas mãos nos pulsos dela, de forma que fosse totalmente apreendida. Não tinha mais o que fazer.
Meia-noite.

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A Modos
RomanceOscar Andrade é um jovem poeta, maltratado pela vida. Eduardo Carvalho é um aspirante a músico, introspectivo aos excessos. Quando ambos se conhecem, um laço se forma entre os dois, que se estende aos seus amigos. Capa por Ester Araujo. Novos capítu...