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Oscar tinha medo de seu pai. Tinha medo de suas opressões, tinha medo do fato de que, obviamente, se tornaria mais violento após a tentativa de divórcio. Todos os dias quando acordava, permanecia querendo saber o resultado de tudo. Só vivia esperando o tão aguardado momento em que o pai sairia de casa e se mudaria para outro estado, desapontado. Aguardava essa derrota, não desde o dia 10, mas desde a primeira discussão, o primeiro espancamento, o primeiro sermão. Não tinha forças para odiar ninguém, mas odiaria o progenitor se tivesse o vigor jovial de seu irmão.
    As medidas protetivas dos pais se tornaram cada vez mais rígidas. Inicialmente, a sra. Andrade apenas olhava com mais cautela o estado dos filhos. Contudo, com o tempo, passou a servir de escudo para todos os conflitos de Carlos, inicialmente internos, mas que se tornavam externos.
    Dentro dos primeiros três dias, ambos viveram em um verdadeiro inferno. O sr. Andrade manifestava sua raiva na esposa e nos filhos, e apesar de não bater nos seus meninos, os xingamentos eram muito maiores e mais pesados, vociferados com asco e ódio. A mãe, sempre defendendo os filhos, sofria por socos e chutes conflitantes, enraivecidos, muito mais severos e expressivos. Contudo, graças a uma contusão que se formou após uma rodada de agressões no dia 13, ela foi levada para o hospital, em apuros.
    Oscar se sentia fraco e covarde. Foi expurgado pelos xingamentos severos do pai, e não conseguiu se recuperar. A cada momento, sentia uma ânsia conflitante, uma agulha lhe rasgando o esôfago, um breu que lhe oscilava os olhos, uma explosão que lhe estourava os tímpanos. Certo dia, enquanto o pai gritava com a mãe, deu um guincho de agonia do quarto. Logo depois, ouviu o pai avançando para a porta, antes da mãe segurá-lo e receber as agressões ao invés do filho. Queria intervir, mas não conseguiu. E se sentia muito, mas muito mal por isso.
    No dia em que a sra. Andrade foi ao hospital, Oscar permaneceu estático em sua cama, abraçando o irmão choroso. Não expressava nenhuma emoção, porque não conseguia sentir nada. Estava exausto de tudo, até mesmo de sofrer.
    A mãe permaneceu alguns dias no hospital, enquanto que os olhos da polícia se voltaram ao pai. Já haviam sido apontados indícios de que a sra. Andrade sofria do marido, mas essa era a prova que faltava, o indício que complementava os relatos dos vizinhos. Carlos, ao receber a notícia de que podia ser preso, gelou. Não admitiria de forma alguma, mas tinha medo. Foi dominado pela covardia.
    Durante os próximos dias, sem a presença feminina em casa, isolou-se totalmente, sem participar nem um pouco na vida dos filhos. Oscar assumiu o papel de cuidador da casa, fazendo o possível para manter o irmão e a si mesmo vivos. O único motivo pelo qual não pensava em cometer suicídio era o choque. Estava chocado demais para pensar nessas coisas. Estava chocado demais para pensar em qualquer coisa. Tinha recebido um trauma ao ouvir os berros desesperados da mãe, mais do que simples gritos, expressões de anos e anos podres sendo vomitados com uma ansiedade inexplicável, num barulho ensurdecedor, desumano e quase que animal. Aqueles gritos ricocheteavam até agora em sua cabeça, bem como o pavor acumulado desde o seu nascimento. Estava, de fato, marcado.
    Não tentava mais consolar o irmão, que todo dia voltava da escola chorando, querendo saber se a mãe permaneceria viva. Estava chocado demais para pensar em literalmente qualquer coisa. Se robotizou. 
    Um dia antes do retorno da mãe, Oscar finalmente percebeu tudo o que acontecia em sua vida. Foi muito súbito, algo que não pôde controlar, mas que se apossou dele. Sentiu seu tórax ser agulhado com uma lança, como se estivesse sendo torturado. Agarrava suas unhas no tapete e na parede, mas sentia que nada daquilo era sequer tangível, e que nada poderia, jamais, salvá-lo. Sua pele empalideceu. Se sentiu asfixiar consigo mesmo, não conseguia acompanhar a própria respiração e tinha medo de engasgar.
    Em um momento, tentou levantar, mas não conseguiu. Se sentia sob o efeito de algum psicotrópico poderoso, de tão potente e transcendente que se tornava seu pânico. Mais que uma vertigem ou um delírio, sentiu-se imerso numa dimensão negra onde quase nunca visitava com frequência. Não queria morrer, não queria se alucinar, mas sentia que era o que estava prestes a acontecer. Suas pupilas dilatavam e chegaram a parecer pequenas bolas de boliche. Seu corpo inteiro arrepiava, e uma tontura, uma tortura, invadia seu cérebro. Suava, tinha dores no estômago, sentia o coração palpitar e explodir dentro de si, mas nada disso importava, pois a única coisa que via era a abstração do próprio desespero. 
    Desmaiou. Acordou empapado no próprio suor. E recebia a notícia de que sua mãe havia recebido alta.
    Após esse ápice, começou a se aliviar lentamente. O pai não lhe parecia mais uma ameaça, e ele gradualmente manteve o equilíbrio sobre a própria vida. Defendeu ao irmão e a si mesmo, querendo incondicionalmente a independência do progenitor. Nunca mais se recuperaria de seu trauma, mas podia pelo menos evitar outros.
    Carlos, tão distante de sua suposta família, se afastou de vez após a mãe ordenar uma medida protetiva. Por seu passado militar, acabou por não ser condenado à prisão, e por isso conseguiu aproveitar a vida numa praia do Rio de Janeiro. Tinha acumulado mágoas demais, e precisava viver sozinho. Por muito pouco não havia sido derrotado.
    Oscar conseguiu retornar o contato com Eduardo, usar o celular por mais de uma hora por dia, se ver livre dos exercícios militares e das repressões. Apesar da incompatibilidade inicial, se acostumou facilmente com essa nova realidade. Estava livre. Livre. 
    Sentia agora o ar fluir por seus pulmões. Estava desestabiliaado por ter tanta liberdade e não saber o que fazer com ela. Demoraram dias até que tomasse um foco na sua vida.
    Lembrava do seu diário. Tinha pena de tê-lo deletado no fogo. Mas se recordou de suas anotações mais recentes. E uma das que fez — não se lembrava se era dia 9 ou 10 de janeiro. Conseguia ressonar muito bem o som daquela anotação na sua cabeça:
    “Estou sentindo saudade dele. É forte. Muito forte.”
    E estava mesmo.

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