Capítulo 29 - Verdade dolorosa

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Cap.29

POV Anne

– Não faz sentido. – Henry continuava murmurando enquanto encarava o chão, sentado abaixo da janela, a nuca roçando no batente de madeira branca. Eu já estava cansada de vê-lo parecer tão deplorável, mas não sabia mais o que dizer para que ele acreditasse. Eu compreendia o choque que ele devia estar sentindo, mas não entendia a dificuldade dele de perceber que fazia parte do mundo que vai além daquilo que os humanos normais enxergam. – Eu não sou um lobo, Anne. Eu sou só eu. Se você estivesse certa, eu não deveria ser capaz de mudar de forma ou alguma coisa assim?

Foi só então que a minha ficha caiu. Ele ainda não tinha se transformado. Ele não era um lobo... ainda.

– A ativação dos genes. – Eu disse em voz alta.

Ele me olhou, ansioso.

– O que isso quer dizer, Anne? – Ele perguntou, a voz trêmula como se ele estivesse a apenas um momento de chorar e eu tivesse o interrompido.

– Os lobos não são como as bruxas, apesar de ambos já nascerem sendo o que são. O gene do lobo pode permanecer latente por toda a vida, pulando de geração em geração, até que alguém não seja capaz de mantê-lo dormente. – Eu disse, divagando.

– Como eu posso evitar virar isso? – Ele indagou, levantando-se e vindo até mim. Quando ele se aproximou, agarrou o meu braço e repetiu a pergunta em tom exigente.

Eu sabia pelo comportamento estúpido e desmedido que a hora se aproximava sorrateira sobre ele. A lua cheia seria em menos de uma semana.

– É tarde, meu querido Henry. Os seus genes estão ativos. – Eu enxerguei a descrença em seu olhar.

– Como você poderia saber? – Seu aperto passou de desconfortável para doloroso.

– Está me machucando, Henry. – Eu disse, incapaz de encará-lo, meus olhos fixos em em seu peito que subia e descia freneticamente.

– Me responda, Anne. Me conte o que você percebeu antes de mim, agora mesmo.

– O servo, Henry. O homem que você matou ativou o gene do lobo em você. É assim que funciona. O seu sangue espera pelo momento em que a raiva supera a razão e é cometido o único pecado para o qual não há jeito.

Ele me olhava incrédulo, e só então libertou-me de seu aperto.

– Existe alguma saída para isso? – Eu neguei com a cabeça. – Quanto tempo eu tenho? – Seu olhar avançou para além da biblioteca através de uma janela mais afastada, na direção da casa de seus pais, eu tinha quase certeza. Ele provavelmente imaginava como poderia explicar toda a situação.

– Quatro, talvez cinco dias até a lua cheia. – Eu toquei seu braço suavemente. – Eu farei de tudo pra te ajudar, tem minha palavra.

– Estou com tanta raiva, Anne. Me sinto tão terrivelmente injustiçado. Tem algo queimando em mim, um ódio que me faz sentir descontrolado, como se eu não fosse capaz de controlar os meus piores traços de personalidade. – Eu sabia que ele se referia a agressividade monstruosa. – Estou com tanto medo de tudo isso. Por Deus eu queria negar a verdade no que você disse, mas eu sinto-me desequilibrado, mais e mais com a passagem dos dias. – Sua voz estava manchada de terror. – Eu deixarei de ser quem sou, meu amor? Eu não mais serei racional, tornarei-me uma besta movida pelos instintos, como um mero animal que vaga pela terra até que alguém o abate?

– Não, Henry. Não é isso que se espera, é só a proximidade da lua, confie em mim, meu amor. Vai ficar mais fácil. Você ainda vai ser você, ninguém poderá roubar isso de ti. – Eu prometi, palavras das quais eu não tinha plena certeza, enquanto acariciava seu rosto retorcido pela preocupação consigo mesmo. – Eu sei que não é um bom momento, mas nós deveríamos retornar, antes que deem por nossa falta.

– Eu não sei se consigo. Não sei como olhar para os meus pais, não sei se posso sentar-me e sorrir para as pessoas enquanto imagino o motivo para meu pai ter escondido tudo isso de mim. Não sei como eu devo proceder daqui, meu amor. – Ele admitiu.

Eu nada disse. Não tinha palavras, mesmo que eu quisesse me colocar em seu lugar, o que eu poderia saber? Henry era um garoto bom e gentil que perdeu a irmã que tanto amava cedo demais e que de uma só vez descobriu que os seus pais esconderam toda a verdade de uma linhagem que carrega um traço tão único quanto o sangue do lobisomem e que essa herança indesejada estava agora nele, apenas aguardando a oportunidade proporcionada pela lua de se revelar.

Ele me abraçou, enterrando sua face em meus cabelos.

– Anne? – Ele chamou.

– Hum?

– Não me odeie por ser um monstro, por favor. – Ele suplicou, sua voz suave.

– Como eu poderia? Depois de você ter me abraçado tantas vezes, enquanto eu te contava sobre como as pessoas dessa escola zombavam de mim por eu ser o que eu sou, depois de você ter me escutado e me feito rir das piores coisas, depois de você ter sido tão bom pra mim, feito eu me apaixonar por você? Eu não poderia te odiar nessa vida, nem na próxima.

Eu jamais tinha dito tais coisas, tampouco admitido estar apaixonada. Eu senti ele se enrijecer de nervosismo ante as palavras, e depois relaxar com o alívio da percepção do que elas significavam. Que eu o amava e que eu estava disposta a enfrentar a batalha que viria pela frente junto dele. Mas aos 16, amamos tudo com intensidade devastadora, e muitas das vezes não enxergamos as consequências das nossas promessas, nossas palavras, nossos compromissos. Estar com Henry traria consequências, e eu sabia, mas eu não sabia o quão rápido o futuro e as consequências começariam a nos atingir.


A filha de MarcelOnde histórias criam vida. Descubra agora