POV Anne
– O seu pai... – Eu não sabia exatamente o que perguntar.
– O que tem? – O rosto dela parecia cansado.
– Você o vê com frequência? – indaguei, sem saber muito bem o motivo.
– Isso é da sua conta? – Ela retrucou. – Olha, com todo o respeito, eu acredito que não seja.
Eu sabia a resposta. Também sabia o porquê de ela ter reagido daquela maneira. Eu me informei sobre ela no dia seguinte a ela se intrometer na minha discussão da cantina. Eu queria conhecê-la e saber da sua história.
"Ela chegou muito jovem na escola. Tinha por volta dos 9, talvez 10 anos. As anciãs abriram exceção por ela ser a filha do representante das bruxas. E ele, o pai, nunca a visitou, nem nos aniversários, nem nos dias destinados ao comparecimento da família. Maurice apenas mandava os servos trazerem vestidos e joias, para adornar a menina, não como um gesto de cuidado, mas porque ele sabia que ela era um reflexo dele próprio, constantemente associada a sua imagem. O mais estranho de tudo isso, é que ele mora a menos de uma hora de distância da escola, e com isso, conclui-se que ele não vem simplesmente por não desejar vir. E ela sabe. Ela sente a ausência do pai. Ela corre de um lado para o outro, ajudando as anciãs sem ganhar nada em troca, estuda e se dedica duas vezes mais do que a maior parte das alunas, tudo para não desonrar o pai. Como se ela tivesse alguma responsabilidade pelo desprezo dele." Foi o que uma anciã me contou.
As palavras me chocaram, assim como a brutalidade da história. Eu não sentia empatia, mas podia imaginar que a sensação não devia ser agradável.
– A minha mãe... Carolina vai se casar. – Eu disse, blefando pra saber se ela sabia de algo.
– Bom, parabéns? – Ela pareceu não entender. – Que importância tem isso para mim? – Ela perguntou enquanto arrumava o cabelo de frente para um espelho oval apoiado na penteadeira. – Qual a relação entre isso e a minha vivência com meu pai?
– Eu acho que queria conversar com alguém, e você foi legal antes, não sei. – Eu baixei a cabeça, pensando seriamente em ir embora. Não estava envergonhada, mas sentia que aquela conversa não estava caminhando para lugar nenhum.
– Eu não sou uma boa pessoa para te dar conselhos familiares. E nós não somos íntimas o bastante para isso. – Eu vi os olhos dela refletidos no espelho e a escuridão deles parecia familiar. Olhos negros e redondos, muito bonitos e tristes.
– É, mas eu queria ouvir você, ainda sim. – Eu insisti. Talvez estivesse tão interessada em ter uma conversa com ela, porque desde a partida de Henry, eu não tinha trocado nem duas palavras amistosas com alguém próximo a minha idade.
– Um conselho? Abraça sua mãe e fala tchau, já que você tem a oportunidade de fazer isso. Fala que ama ela e que quer que ela seja feliz. Não acho que existe outro caminho além desse. – Ela suspirou pesadamente.
– Você faria isso se fosse sua mãe se casando com um desconhecido? – Eu inquiri, revoltada com o tom sempre calmo dela. Apesar de saber que falar da família a incomodava, eu a cutuquei, mais e mais.
– Eu não tenho mãe, Anne. – Ela me respondeu friamente. – Mas sim, se eu soubesse que ela iria embora, eu a abraçaria e diria tchau. Já que ela pode não voltar a te ver.
– Credo, você fala como se ela fosse me abandonar para todo o sempre.
– De verdade, eu não sei. É só que, falar sobre mãe, não é uma coisa confortável para mim.
– Por que não? – Eu pressionei.
– A minha mãe, casou com o meu pai, obrigada pelos meus avós. Ela não gostava dele, mas ele a adorou desde o primeiro momento. Ela engravidou e me deixou para que ele cuidasse, e voltou para a casa dos meus avós, do outro lado do oceano. Ela não me queria, fez isso só para que o meu pai tivesse uma criança para segurar no colo. – Ela disse, com os olhos cheios de lágrimas.
– Deve ter sido difícil para o seu pai. – Eu supus.
– Você não faz ideia. Ele me deixou com os servos, igual sempre deixava, e foi atrás dela assim que conseguiu. Mas ela estava envolvida com outro homem, vivendo como se meu pai e eu fossemos só uma lembrança fictícia do passado dela. Saber daquilo afetou meu pai, ele não quis mais nada desde aquilo, nem mesmo saber de mim. E conforme eu crescia, a minha presença se tornava mais e mais incômoda para ele. Então ele usou das vantagens de ter o nome de uma família renomada entre as bruxas, para me enfiar aqui. Lugar esse, onde eu estou até hoje. – O rosto dela estava com uma expressão distante, mas os olhos mostravam a sua tristeza. – Eu não tive família, então, se o que você quer é uma companheira para dizer a você o que fazer sobre coisas como essas, eu não sou a pessoa. Por favor, vá.
– Celeste... eu sinto...
– Não estou nem aí. Eu te peço que vá. – Eu hesitei. – Já.
Eu não insisti, o ar do quarto parecia pesado e eu não queria ter que respirar lá por nem mais um minuto. A tristeza dela era amarga e sufocante. E eu já tinha tido um bom vislumbre do tipo de cara que Maurice Dubois parecia ser.
Eu consegui reunir forças o bastante apenas para voltar até meu quarto, e chegando lá, me deitei e caí em um sono tão profundo que me fez sonhar. Ou melhor, ter um pesadelo.
Tinham os cabelos castanhos e cacheados, parecidos, mas não iguais, os olhos que assim como os cabelos eram de duas pessoas diferentes mas poderiam ser de uma mesma mulher. Tinha dor, uma sensação amarga atrás da língua. O grito de alguém, o choro de um bebê. "Ele não suportava olhar para mim". Eu vi a mãe entregar o bebê nos braços do pai, antes de amamentar uma vez sequer. "Você tem o que queria, seja feliz". A mulher fria, seguiu em frente, deixando a menininha chorando nos braços do pai.
Tudo tinha sido bagunçado e confuso, mas eu sabia que era sobre a Celeste. Mas a mulher, a mãe, eu a conhecia de algum lugar, aqueles olhos escuros e hostis. Eu acordei com um suor pegajoso e frio, Carolina estava ao lado da minha cama, a cabeça baixa, rezando por mim, eu imaginei.
– Ele te ouviu. – Eu disse, me ajeitando na cama e sorrindo enquanto ela me olhava. – Não foi dessa vez que eu morri.
– Você acha isso engraçado? Eu saí por pouquíssimo tempo e você fez esforço o bastante para ter febre e um quadro de delírio. – Ela estava com a expressão cansada e os olhos tristes e chorosos. – Não é engraçado.
– Eu sei, me desculpa. Eu só precisava caminhar um pouco, devo ter exagerado.
– Você é tão irresponsável, francamente. – Ela disse, soluçando e subindo na cama, para me abraçar bem forte. Os braços dela eram quentes e confortáveis. Eu amava os abraços dela.
Naquela noite, ela dormiu agarrada comigo, como se temesse que eu sumisse, ou morresse durante a noite. Ela ficou lá, do meu lado, como se eu fosse a única coisa na vida dela que importava o bastante, mais do que todo o resto. Eu me apeguei àquela sensação, era reconfortante, e dormi, como se o mundo não tivesse problema nenhum quando os braços dela estavam ao meu redor.
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A filha de Marcel
FanfictionNascer bruxa no quartel francês já não era uma coisa muito boa, mas ser abandonada ainda bebê pela mulher que deveria me amar, foi ainda pior. Mas eu tive a sorte de encontrar um pai que me amou e que me deu uma família. Eu sou Anne Marie Gerard, um...