Capítulo 34 - Relação conturbada

66 5 0
                                    

POV Anne

– O seu pai... – Eu não sabia exatamente o que perguntar.

– O que tem? – O rosto dela parecia cansado.

– Você o vê com frequência? – indaguei, sem saber muito bem o motivo.

– Isso é da sua conta? – Ela retrucou. – Olha, com todo o respeito, eu acredito que não seja.

Eu sabia a resposta. Também sabia o porquê de ela ter reagido daquela maneira. Eu me informei sobre ela no dia seguinte a ela se intrometer na minha discussão da cantina. Eu queria conhecê-la e saber da sua história.

"Ela chegou muito jovem na escola. Tinha por volta dos 9, talvez 10 anos. As anciãs abriram exceção por ela ser a filha do representante das bruxas. E ele, o pai, nunca a visitou, nem nos aniversários, nem nos dias destinados ao comparecimento da família. Maurice apenas mandava os servos trazerem vestidos e joias, para adornar a menina, não como um gesto de cuidado, mas porque ele sabia que ela era um reflexo dele próprio, constantemente associada a sua imagem. O mais estranho de tudo isso, é que ele mora a menos de uma hora de distância da escola, e com isso, conclui-se que ele não vem simplesmente por não desejar vir. E ela sabe. Ela sente a ausência do pai. Ela corre de um lado para o outro, ajudando as anciãs sem ganhar nada em troca, estuda e se dedica duas vezes mais do que a maior parte das alunas, tudo para não desonrar o pai. Como se ela tivesse alguma responsabilidade pelo desprezo dele." Foi o que uma anciã me contou.

As palavras me chocaram, assim como a brutalidade da história. Eu não sentia empatia, mas podia imaginar que a sensação não devia ser agradável.

– A minha mãe... Carolina vai se casar. – Eu disse, blefando pra saber se ela sabia de algo.

– Bom, parabéns? – Ela pareceu não entender. – Que importância tem isso para mim? – Ela perguntou enquanto arrumava o cabelo de frente para um espelho oval apoiado na penteadeira. – Qual a relação entre isso e a minha vivência com meu pai?

– Eu acho que queria conversar com alguém, e você foi legal antes, não sei. – Eu baixei a cabeça, pensando seriamente em ir embora. Não estava envergonhada, mas sentia que aquela conversa não estava caminhando para lugar nenhum.

– Eu não sou uma boa pessoa para te dar conselhos familiares. E nós não somos íntimas o bastante para isso. – Eu vi os olhos dela refletidos no espelho e a escuridão deles parecia familiar. Olhos negros e redondos, muito bonitos e tristes.

– É, mas eu queria ouvir você, ainda sim. – Eu insisti. Talvez estivesse tão interessada em ter uma conversa com ela, porque desde a partida de Henry, eu não tinha trocado nem duas palavras amistosas com alguém próximo a minha idade.

– Um conselho? Abraça sua mãe e fala tchau, já que você tem a oportunidade de fazer isso. Fala que ama ela e que quer que ela seja feliz. Não acho que existe outro caminho além desse. – Ela suspirou pesadamente.

– Você faria isso se fosse sua mãe se casando com um desconhecido? – Eu inquiri, revoltada com o tom sempre calmo dela. Apesar de saber que falar da família a incomodava, eu a cutuquei, mais e mais.

– Eu não tenho mãe, Anne. – Ela me respondeu friamente. – Mas sim, se eu soubesse que ela iria embora, eu a abraçaria e diria tchau. Já que ela pode não voltar a te ver.

– Credo, você fala como se ela fosse me abandonar para todo o sempre.

– De verdade, eu não sei. É só que, falar sobre mãe, não é uma coisa confortável para mim.

– Por que não? – Eu pressionei.

– A minha mãe, casou com o meu pai, obrigada pelos meus avós. Ela não gostava dele, mas ele a adorou desde o primeiro momento. Ela engravidou e me deixou para que ele cuidasse, e voltou para a casa dos meus avós, do outro lado do oceano. Ela não me queria, fez isso só para que o meu pai tivesse uma criança para segurar no colo. – Ela disse, com os olhos cheios de lágrimas.

– Deve ter sido difícil para o seu pai. – Eu supus.

– Você não faz ideia. Ele me deixou com os servos, igual sempre deixava, e foi atrás dela assim que conseguiu. Mas ela estava envolvida com outro homem, vivendo como se meu pai e eu fossemos só uma lembrança fictícia do passado dela. Saber daquilo afetou meu pai, ele não quis mais nada desde aquilo, nem mesmo saber de mim. E conforme eu crescia, a minha presença se tornava mais e mais incômoda para ele. Então ele usou das vantagens de ter o nome de uma família renomada entre as bruxas, para me enfiar aqui. Lugar esse, onde eu estou até hoje. – O rosto dela estava com uma expressão distante, mas os olhos mostravam a sua tristeza. – Eu não tive família, então, se o que você quer é uma companheira para dizer a você o que fazer sobre coisas como essas, eu não sou a pessoa. Por favor, vá.

– Celeste... eu sinto...

– Não estou nem aí. Eu te peço que vá. – Eu hesitei. – Já.

Eu não insisti, o ar do quarto parecia pesado e eu não queria ter que respirar lá por nem mais um minuto. A tristeza dela era amarga e sufocante. E eu já tinha tido um bom vislumbre do tipo de cara que Maurice Dubois parecia ser.

Eu consegui reunir forças o bastante apenas para voltar até meu quarto, e chegando lá, me deitei e caí em um sono tão profundo que me fez sonhar. Ou melhor, ter um pesadelo.

Tinham os cabelos castanhos e cacheados, parecidos, mas não iguais, os olhos que assim como os cabelos eram de duas pessoas diferentes mas poderiam ser de uma mesma mulher. Tinha dor, uma sensação amarga atrás da língua. O grito de alguém, o choro de um bebê. "Ele não suportava olhar para mim". Eu vi a mãe entregar o bebê nos braços do pai, antes de amamentar uma vez sequer. "Você tem o que queria, seja feliz". A mulher fria, seguiu em frente, deixando a menininha chorando nos braços do pai.

Tudo tinha sido bagunçado e confuso, mas eu sabia que era sobre a Celeste. Mas a mulher, a mãe, eu a conhecia de algum lugar, aqueles olhos escuros e hostis. Eu acordei com um suor pegajoso e frio, Carolina estava ao lado da minha cama, a cabeça baixa, rezando por mim, eu imaginei.

– Ele te ouviu. – Eu disse, me ajeitando na cama e sorrindo enquanto ela me olhava. – Não foi dessa vez que eu morri.

– Você acha isso engraçado? Eu saí por pouquíssimo tempo e você fez esforço o bastante para ter febre e um quadro de delírio. – Ela estava com a expressão cansada e os olhos tristes e chorosos. – Não é engraçado.

– Eu sei, me desculpa. Eu só precisava caminhar um pouco, devo ter exagerado.

– Você é tão irresponsável, francamente. – Ela disse, soluçando e subindo na cama, para me abraçar bem forte. Os braços dela eram quentes e confortáveis. Eu amava os abraços dela.

Naquela noite, ela dormiu agarrada comigo, como se temesse que eu sumisse, ou morresse durante a noite. Ela ficou lá, do meu lado, como se eu fosse a única coisa na vida dela que importava o bastante, mais do que todo o resto. Eu me apeguei àquela sensação, era reconfortante, e dormi, como se o mundo não tivesse problema nenhum quando os braços dela estavam ao meu redor.


A filha de MarcelOnde histórias criam vida. Descubra agora