Achado

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"As vezes é preciso dormir, dormir muito. Não para fugir, mas para descansar a alma dos sentimentos. Quem nasceu com a sensibilidade exacerbada sabe o quão difícil é engolir vida. Porque tudo, absolutamente tudo devora a gente. Por inteiro." — Marla de Queiroz.


Sean 14:45 PM 

Não sabia exatamente que dia era hoje e era difícil identificar a hora porque lá fora estava sempre com a mesma iluminação branca trazida pela neve. Estava com um sede devastadora e eu não sabia dizer quando foi a última vez eu tinha bebido água ou comido alguma coisa, tudo que eu fiz foi injetar algumas coisas em mim e dormir como se não houvesse amanhã já que com quase todas as ruas fechadas não daria para fazer muita coisa nesse momento. A sensação de vazio me domina por inteiro, era feriado e todos estavam em casa com suas famílias jantando e comemorando em ambientes quentes e bem iluminados e tudo que me restava disso eram  as poucas memórias da minha infância que que dissipavam dia a após dia, eu tentava a todo custo mantê- las intactas mas era um pouco difícil, eu já nem me lembrava mais da sensação de um abraço ou de alguém se preocupando genuinamente comigo e me perguntando como havia sido meu dia, as drogas estavam acabando com os últimos resquícios de minhas memórias o que eu não achava tão ruim, era doloroso demais lembrar de coisas felizes que eu nunca mais viveria, emoções como cuidado e amor que eu nunca mais sentiria. No momento tudo que eu mais queria era parar de sentir e esquecer completamente tudo que me gere dor ou desprazer, eu merecia isso, já não sofri demais? Ainda consigo me lembrar de passar esse mesmo feriado na prisão de ser espancado covardemente por outros detentos e ser jogado na solitária como um saco de lixo no chão frio em pleno inverno sem um colchão ou um mísero cobertor para afugentar pelo menos uma parcela do frio, naquele dia eu não tinha as drogas para me anestesiar então fiquei acordado pensando na situação que tinha me envolvido me perguntando se tinha valido a pena ser tão leal a alguém que poderia me substituir em um estalar de dedos. 
  Eu sei que eu tinha que levantar, comer alguma coisa, tomar água e pensar em um banho quente, mas eu simplesmente não conseguia, era complicado demais e eu faria tudo isso para que? para viver mais um dia monótono? Mais um dia pensando e repensando na vida patética que eu tinha tido? pensando na Blake… que eu não sabia o que estaria fazendo agora, será que ela estava sozinha como eu? será que saiu com algum amigo? pensar nisso me deixa ainda mais depressivo pois ainda consigo pensar nas possibilidades que aconteceriam caso estivéssemos juntos, talvez rindo e bebendo enquanto tem alguma coisa assando no forno, talvez dormindo juntos exatamente como naquele dia do piquenique, ou simplesmente assistindo alguma coisa juntos. 
 Ainda penso em como seria minha vida se meus pais ainda estivessem aqui, em como eu seria, se talvez eu estivesse na faculdade ou sendo um jogador profissional como meu queria que eu fosse, será que eu encontraria Blake nesse outro universo? será que daremos certos se eu fosse uma pessoa mais  sincera? sorrio ao pensar nessas opções e no quanto seria maravilhoso levá- la para conhecer meus pais, minha casa, talvez ensinar alguns arremessos para ela, cozinhar juntos na cozinha da minha mãe. 

Eu não tive escolha a não ser levantar e ir direto pro banheiro, nesse tempo procrastinando a minha vida negligenciei minha higiene e não há nada melhor do que escovar os dentes e tomar um banho quente e demorado. Infelizmente não havia comida em casa o que para mim era normal pois eu tinha o hábito de comer na rua, então eu teria que sair nesse tempo para comprar algo e isso era desanimador para caralho mas eu não tinha escolha. 
  O frio estava congelante e a neve deixou tudo muito sujo e escorregadio o que era uma merda quando se mora no subúrbio pois o que era ruim ficava 3x mais. Tive a sorte de pegar uma loja de conveniência aberta que felizmente tinha as porcarias que eu sempre comprava como macarrão instantâneo, pão e pasta de amendoim que não eram as comidas mais apropriadas para um feriado mais eram as únicas coisas que eu poderia propiciar para mim mesmo naquele momento já que não estava nem um pouco a fim de cozinhar. No caminho de volta decido passar por alguns prédios abandonados a fim de não pegar a neve escorregadia das ruas e quando estou atravessando no escuro ouço um barulho estranho, então paro a fim de ouvir mais o que era. Eram ganidos, que mesmo com o barulho de fora eram bem audíveis e quando vou verificar o que é vejo um cachorrinho, na verdade um filhotinho em meio ao lixo se encolhendo todo para fugir do frio e não posso deixar de me perguntar como ele tinha sobrevivido a esse frio tenebroso sozinho e abandonado, meu coração se aperta, eu sei que não posso deixá- lo aqui se não ele acabaria morrendo pelo frio, mas também não posso levá-lo comigo pois não tinha tempo para lidar com ele já que eu passava dias longe de casa e eu duvido que conseguiria achar alguém para cuidar de um vira lata de rua então minhas opções eram um pouco escassas na verdade quase nulas e então alguém surge na minha mente, alguém que eu magoei muito e que não queria mais me ver mas alguém que eu sei que não teria coragem de abandoná- lo, alguém que era simpática, amistosa e por isso tem muitos amigos e talvez consiga achar alguém para ele e eu não tinha muitas opções, e eu não precisava interromper seu feriado era só colocá-lo em sua porta e sair rapidamente sem perturbar seu sossego. 
      Estou há alguns segundos alternando o olhar entre a porta de madeira a minha frente e o filhotinha dentro da caixa que eu arrumei dormindo profundamente, será que eu só deveria deixá-lo aqui? estava muito frio e talvez ela nem o notasse hoje, ou talvez não estivesse em casa mas isso  era pouco provável pois ninguém sairia com o tempo assim, decido apertar sua campainha e espero alguns segundos, quando penso em simplesmente deixá-lo lá e ir embora ela abre a porta e de repente fico tenso, eu não deveria estar ali, não depois de tudo então simplesmente balbucio algumas coisas coloco a caixa em sua mão e saio rapidamente ainda com a imagem fresca em minha mente do seu cabelo leqvemente desalinhado e sua cara amassada de sono, sorrio internamente ao pensar que eu poderia facilmente me acostumar com isso. Depois de algum tempo, de já ter chego em casa e comido quando já estou na cama recebo um SMS seu me dando notícias e constatando que eu estava certo a respeito do seu caráter. 




* A música que recomendo para esse capítulo é Feel something da Bea Miller.

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