Pais e Filhos

42 7 46
                                    

Tendo encarando o cano da arma de Ivo e beijado a testa de Amara dizendo amá-la, o garoto fechou os olhos, crendo não voltar a abri-los. Contudo, como se a percepção do tempo cessasse, o tiro não foi dado, e Kito já não estava mais ali, havia voltado há muitos anos, quando ainda mal sabia falar. A lembrança que lhe veio, foi como um déjà-vu, uma repetição.

Kito, o garotinho, estava sentado numa cama grande demais comparada ao seu tamanho. Ghedi estava sentado em poltrona, com os olhos arregalados trazia uma expressão de medo, era notório que estava atormentado. Olhava para os lados repetidamente, e sempre repousava o olhar no garotinho sentado na cama, encarando o pai, olhava sorrindo para uma mulher de pé no centro do quarto, que gritava indignada apontando o dedo para o homem sentado na poltrona com uma arma em mãos.

Naquela lembrança o rosto da mulher estava mais nítido que antes. Aquela era uma recordação recorrente, mas até então o rosto da mulher, e as palavras ditas não eram nada claras, mas aquele momento trouxe tudo à luz, e Kito pôde rever, ainda que em sua mente, o rosto da mãe, e ouvi-la.

— Eu não aguento mais Ghedi! — gritava a mulher, gesticulando, passando as mãos nos cabelos presos em coque — Você não pode continuar assim, vai se matar, me matar, matar o seu filho seu... Paranoico de merda!

Ghedi nada dizia, continuava a olhar para os lados com aflição, levantou-se e foi até a janela e observou o perímetro, mas sem colocar a cabeça para fora. Voltou e passou a mão na cabeça do filho, que observava tudo, porém, sem dar importância para os gritos, mostrando talvez que aquilo fosse normal, rotineiro ali, o garoto apenas brincava com seus inúmeros bichos de pelúcia.

— Ele está na cidade Dalji — disse Ghedi, aos sussurros —, ele continua aqui, eu o senti, senti a presença dele hoje, tenho que encontrá-lo antes que ele comece a matar outra vez.

— Por que não podemos somente ir embora caramba? Vamos pôr o pé na estrada, voltar a viver viajando — Dalji se aproximou de Ghedi, ajoelhando na frente do homem tocou-lhe no rosto fazendo aquietar a vigília dos olhos —, dissemos que ficaríamos nesse fim de mundo até que o Kito estivesse estivesse crescido, olha pra ele, já tem três anos, já estamos aqui há três anos, merda!

— Como eu posso ir embora, e deixar aquela coisa a solta? — argumentou Ghedi — Seria condenar todos a morte, que tenho que encontrá-lo...

— Tem uma ova, o que você tem de fazer é cuidar do seu filho seu... Seu idiota! — bradou Dalji se, levantado — Se não quer vir, fique aí, eu vou dar o fora desse lugar agora mesmo.

Dalji pegou o pequeno Kito no colo, catou duas bolsas que estavam ao lado da cama e as chaves da velha combi. Entretanto a mãe não pôde sair, foi impedia pelo pai, armado, que se levantou e bloqueou a passagem.

— O que pensa que está fazendo? Aonde vai com meu filho? — Ghedi estava furioso, apontando a arma ao rosto de Dalji — Se quiser ir pode ir, mas não deixarei que arrisque a vida do meu filho, H'ebimpa está lá fora, talvez você nem consiga sair da cidade.

— Que merda Ghedi, por quê? Por que está fazendo isso?

As lágrimas rolavam pelo rosto de Dalji, deixando um rastro brilhante na pele retinta, como um riacho adornado de pedras pretas. Ela argumentou, mas Ghedi não cedeu, Kito ora olhava o pai, ora a mãe, mas na maior parte do tempo remexia curioso uma pantera de pelúcia. Nada o incomodava, até o momento quem que a mãe o entregou ao pai.

Primeiro os olhos brilhantes e trêmulos, depois o "beicinho", por fim o choro escandaloso. Mãe e filho choravam num só tom, alto e sincronizados como um coro.

— Calma meu bebê, está tudo bem, não chore, por favor não chore — Dalji se sentia ferida por dentro, era como se uma mão penetrasse o interior e arrancasse um pedaço enorme de sua alma, de sua vontade de viver. — Mamãe te ama, meu amor... Eu te amo!

Covardes Não Tem Final FelizOnde histórias criam vida. Descubra agora