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Nunca pensei que poderia conhecer alguém tão pontual, atrasos e desculpas esfarrapadas sempre era comum entre os meus pacientes, que às vezes chegavam dois minutos atrasados, vinte minutos atrasados, duas horas atrasados, nenhum nunca foi pontual, além da primeira consulta óbvio, mas Enid, olha, ela batia o recorde de pontualidade.

Eu vi o momento em que o relógio mudou para onze horas, em ponto, e foi questão de segundos depois, pude escutar a leve batida contra a madeira, não querendo chamar muita atenção, mas mostrando que estava ali.

- Enid, fico feliz que tenha retirando - saudei, dando um passo para o lado, deixando a passagem livre para que ela entrasse, e ela logo o fez.

Fechei a porta, me sentei, repeti cada passo que dei na consulta passada, indicando para que ela se sentasse, a sua roupa era parecida, mudando apenas a cor, rosa claro desta vez, mesmo estilo de conjunto moletom, uma camisa branca por baixo, que ultrapassava um pouco a altura do seu moletom, o mesmo tênis, cabelos soltos, e a sua cicatriz.

Os seus olhos, pareciam...diferentes, de verdade pareciam, um pouco menos desconfiados, mas ainda, sim, ela se sentia desconfortável. E isso piorou um pouco quando abri meu bloco de anotações.

- Bom, me conte como foi sua semana? O que traz de novo para hoje?

- Hum... - murmurou, passando a palma de suas mãos sobre a calça, parando um pouco e enrolando o tecido em seus dedos, olhando em volta antes de dar de ombros.

"Ela ainda se sente desconfortável em iniciar a conversa, não conta sobre ela caso eu não faça uma pergunta".

- Como está seu sobrinho?

- Bem, ele está bem. Acompanhei ele ao pediatra e agora ele poderá comer frutas, nada de frutas cítricas, isso pode fazer mal ao estômago dele.

- E a sua irmã?

- Reclamando que o trabalho está a matando...todos os dias. Imagino que deve ser difícil.

"Apego emocional ao sobrinho, parece amá-lo de uma forma ingênua e pura".

- Como eu disse na nossa consulta teste, preciso te conhecer hoje. Temos que ter uma base sobre o seu estado e o motivo principal na qual está aqui.

- O doutor Miller não passou as informações? - murmurou, a contragosto sobre minha ideia de conhecimento

- Não ele não pode, é proibido contra ou revelar qualquer caso de qualquer paciente. Por isso quero te conhecer hoje, sinto que não é tão difícil, não é?

- O que você quer saber?

"O recuamento e a mudança brusca na voz acontece quando não concorda com algo, mas mesmo assim sede".

- Defina você em três palavras - comecei, me inclinando sobre a poltrona até me sentir confortável, capturando cada expressão da mulher, olhei suas mãos que começavam a passar e a repassar sobre a calça, nervosa e ansiosa, enrolando e enrolando o pano nos dedos.

Olhando para tudo menos para mim, seus dentes querendo arrancar pedaços da pele de sua boca, me senti um pouco mal pela forma que a deixei daquele estado, mas era o meu trabalho, ela havia procurado por mim, então eu tinha que aplica-lo.

- Tem alguma ideia do que possa te impedir de conversar comigo, Enid?

- Eu só...não gosto de falar sobre...eu mesma. Não sou importante o suficiente para esse tipo de diálogo tão atencioso...

- Esse é o meu trabalho, o meu trabalho e o meu dever é ouvir você. Assim como te respeitar caso queira ficar em silêncio, mas em algum momento terei que te conhecer, e adiar isso só pode piorar a sua situação. Por que não se acha importante o suficiente?

- Olha pra mim - ironizou, dando uma risada nasal e negando em seguida - O que eu tenho de importante?

- Não saberei te responder até você me contar - o seu suspiro foi longo e profundo, eu aguardei.

- Meu nome é Enid...Enid Sinclair...eu tenho vinte e três anos, moro com a minha irmã mais velha e com meu sobrinho e sou...uma pessoa pós traumática, bom, é assim que me apresentam as vezes.

- Acha que podemos conversar sobre seu trauma? - ela negou - Tudo bem.

"Parece acreditar no que as outras pessoas falam sobre ela, aceitando e usando como informação"

- Me disse que essa é a forma que as pessoas te apresentam? - assentiu - Então se apresente da sua forma, como você realmente é? Quero conhecer a Enid sobre a própria Enid, não a Enid pelas pessoas.

- Eu...gosto do mar - falou, eu sorri, aquilo ja era alguma coisa - Conchas e areia. A praia é como uma casa a céu aberto, tendo as ondas como uma canção de ninar, as estrelas como um abajur e a areia como um cobertor, eu gosto dessa sensação...ela é boa. Gosta de ir à praia?

- Sim, eu gosto. Os dias ensolarados são meus favoritos.

- Dias cinzas também podem ser lindos. A forma que a natureza revela a sua força na maré, nas ondas e nos ventos, eu acho bonito, é uma forma de demonstrar que nem todos os dias o sol estará sobre nossas cabeças, nem todos os dias o oceano estará transparente e inocente, assim como nós.

- Assim como nós?

- Sim, assim como nós. Você não se sente bem todos os dias, e mesmo você sendo a pessoa mais legal com todos, um dia você quer apenas ser cinza, mas...as pessoas não entendem que pessoas coloridas, as vezes tem as suas emoções cinzas, assim como a praia.

- Você era uma pessoa colorida? - deu de ombros

- Ouvir um "Nossa, mas você mudou tanto, o que aconteceu com você?" As vezes cansa. E saber que não posso dar a resposta verdadeira, faz o meu cinza se transformar em preto, cada dia mais escuro e cada dia mais doido.

- E por que não pode dizer a verdade? O que isso lhe custaria?

- A minha vida quem sabe...então é mais fácil...apenas fingir que não existo, não a muitas pessoas nas quais fará diferença, então eu acho que não é tão complicado.

- Sobre você não poder dizer a verdade, isso tem relação ao seu trauma?

- Quem sabe - murmurou, olhando para a minha mesa de canto e depois para parede ao lado - Doutor Miller me dizia que eu deveria sair mais, que é bom ter amigos e ser sociável. Mas quem se importa com isso hoje? O importante para todos é saber se o filtro do Instagram está perfeito o suficiente para obter um número superficial de curtidas e comentários. Hoje o melhor amigo do homem é o celular e não outro homem.

- Diz isso para suas amigas?

- É pode ser, quem liga? Me sinto sociável o suficiente apenas acompanhando uma festa via story's. Já que as pessoas postam tudo sobre o seu dia a cada dez segundos.

- Existe pessoas que possam pensar diferente, e que talvez estejam atrás de pessoas de verdade e não virtuais.

- Então onde estão essas pessoas?

- Você terá que procura-las.

- Eu ja tentei, procurei tanto que cansei.

"Acho que...ela precisa de um amigo".

- Eu não sou a pessoa mais sociável do mundo - disse por fim - Eu era, digo, eu acho que era.

"Insegurança sobre a sua fala, não tendo certeza mesmo que claramente ela tem certeza do que diz"

- E o que te fez perder toda essa realidade sociável?

- Não importa

- Sim, importa.

- Não, não importa - reforçou, deixei que mais um suspiro escapasse por minhas narinas e concordei. Aquilo séria mais difícil do que imaginava.

"Ela de fato...precisa de um amigo".

The Psychologist - WenclairOnde histórias criam vida. Descubra agora