Capítulo Vinte e Nove

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|KAILE|

Um som agudo, insistente, parece martelar dentro da minha cabeça. Meus olhos piscam, pesados e confusos, enquanto tento distinguir as formas ao meu redor. Há uma luz intensa que me incomoda, quase como se o sol estivesse logo acima de mim. Tudo é branco, brilhante, e por um instante, não sei onde estou. Minha mente está enevoada, lenta. Aos poucos, o cheiro de antisséptico e o bip constante de máquinas começam a me trazer de volta. Eu conheço esse lugar... é um hospital. Minha irmã Fernanda e meu cunhado Vicente trabalham em hospitais, então já estive em muitos desses ambientes, mas... o que eu estou fazendo aqui?

Tento me mexer na cama, mas sinto meu corpo pesado, como se estivesse preso sob o peso de algo invisível. A confusão começa a se transformar em ansiedade. Algo está errado. Pressiono o botão de chamada ao lado da cama, sentindo um frio crescente no estômago. Não demora muito até que uma enfermeira entre pela porta. É uma mulher idosa, cabelos grisalhos e olhar firme, mas gentil. Em seu crachá está escrito seu nome: Glória.

— Ah, você está acordado, graças a Deus — ela diz, enquanto se aproxima e começa a checar meus sinais vitais com rapidez e precisão. — Você está em um hospital, querido. Foi resgatado de um incêndio.

Incêndio? As palavras dela caem como pedras no meu estômago, e de repente, as lembranças me atingem como uma enxurrada, violentas e implacáveis. O calor sufocante, o fogo consumindo o prédio, o caos, a fumaça. Lígia desmaiada nos meus braços. As paredes caindo ao nosso redor. O desmoronamento... Meu coração começa a disparar, o pânico se apodera de mim enquanto cenas fragmentadas daquele inferno passam diante dos meus olhos.

— Meus amigos... — consigo murmurar, mas minha voz soa estrangulada. — Amara, Rodolfo, Débora, Lígia... onde eles estão?

Glória me olha com preocupação e coloca uma mão firme no meu ombro.

— Vou chamar o médico, querido, você precisa se acalmar.

Ela começa a se afastar, mas eu a agarro pelo braço, o desespero crescendo dentro de mim como um mar revolto. As imagens do fogo, do prédio desabando, estão vívidas na minha mente, como se eu ainda estivesse lá. O medo que senti naquele momento agora se mistura ao terror do desconhecido. Eu preciso saber se eles estão bem. Eu preciso ter certeza de que todos conseguiram sair vivos.

— Por favor... — imploro, sentindo as lágrimas começarem a se formar nos meus olhos. — Me diga... meus amigos... eles estão bem?

Glória hesita, vendo meu estado de pânico, e tenta se libertar do meu aperto gentilmente.

— Vou trazer alguém para falar com você. Calma, já volto.

Ela começa a sair, mas antes que eu possa falar qualquer coisa, algo estranho me atinge. Tento me mexer na cama, tento me levantar, mas... nada acontece. Minhas pernas... por que minhas pernas não se movem?

Eu olho para baixo, incrédulo, e tudo ao meu redor parece desacelerar. Tento novamente, forçando cada músculo, mas... não há resposta. Minhas pernas estão completamente imóveis. Sinto meu corpo congelar enquanto a verdade começa a se instalar, fria e brutal.

— Não... não, isso não pode estar acontecendo...

Eu grito, tentando mexer novamente, como se o simples ato de desejar movimento pudesse forçar meu corpo a obedecer. Nada. Não há dor, apenas o vazio, a ausência de qualquer sensação nas pernas. O que aconteceu comigo? O pânico que antes era sobre meus amigos agora se transforma em algo ainda maior, mais profundo. Eu não consigo sentir minhas pernas.

— Por que... minhas pernas não estão se mexendo?! — minha voz sai em um misto de desespero e incredulidade, ecoando pelo quarto.

Glória volta correndo ao me ouvir, mas ela não precisa de palavras para entender o que está acontecendo. O pânico no meu rosto diz tudo.

— Vou chamar o médico agora — ela diz, claramente alarmada, saindo em disparada pela porta.

Minha respiração fica rápida e irregular, meus pulmões queimam, não por causa da fumaça desta vez, mas pela ansiedade esmagadora. Minhas pernas não se movem. Eu sinto como se estivesse preso em um pesadelo do qual não consigo acordar. As cenas do incêndio se misturam com a realidade do agora, me lançando em um redemoinho de terror.

Puxo o lençol que cobre minhas pernas, como se pudesse ver alguma explicação. Talvez um gesso, talvez algum curativo que explique essa sensação... mas nada. Elas estão ali, normais, sem muitos sinais externos de ferimentos além de algumas queimaduras, mas elas não respondem. É como se uma parte de mim estivesse morta.

Começo a hiperventilar, sentindo o peso insuportável da verdade me esmagando. Eu não consigo mexer minhas pernas. O que isso significa? Para onde foi o controle que eu sempre tive sobre o meu próprio corpo? Como vou... como vou viver assim? A ideia de nunca mais andar, de não poder correr, de não poder mais sentir o chão sob meus pés... me destrói.

— Isso não pode ser verdade. — murmuro para mim mesmo, como se pudesse me convencer de que tudo isso é um erro, um engano. — Eu estava... estava salvando Lígia. Estava... eu estava bem. Como isso pode ter acontecido?

Os flashes de memória voltam com mais força. O teto desabando, as paredes caindo, o calor, o fogo. Eu me lembro de ter segurado Lígia, me lembro de tentar protegê-la com meu corpo. E depois... o colapso. O peso esmagador das vigas caindo sobre nós.

As lágrimas começam a escorrer pelo meu rosto enquanto me dou conta do que aconteceu. O incêndio não foi só um pesadelo. Ele me tirou algo mais. Me tirou a liberdade, a capacidade de andar. Me tirou minhas pernas.

— Não! — grito, a voz ecoando pelo quarto, desesperada.

A porta se abre com força e o médico entra, seguido por Glória e mais duas enfermeiras. Ele fala comigo, mas suas palavras parecem distantes, abafadas, como se estivesse debaixo d'água. Ele tenta explicar alguma coisa sobre trauma, sobre possíveis danos na coluna, mas tudo que ouço é o som do meu mundo desmoronando. Não consigo assimilar nada do que ele diz. Tudo o que sinto é o vazio nas minhas pernas, o terror de um futuro que nunca imaginei para mim.

— Eu vou andar de novo? — pergunto, interrompendo o fluxo de palavras técnicas do médico.

Ele me encara por um momento, seus olhos revelando algo que ele talvez não queira dizer. E nesse silêncio, minha última esperança se desfaz. Eu não preciso ouvir a resposta. Já sei a verdade. E ela é insuportável. 

💔

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Aprendizes -Os Bertottis #4 [Completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora