Havia vantagens e desvantagens de conhecer alguém como a palma da sua mão. Muitas das desvantagens haviam levado eles ao segundo divórcio, isso a delegada sabia. Ela sempre sabia quando ele estava mentindo (havia o lado bom, mas sempre doía perceber que esse era um hábito que ele ainda mantinha), sabia quando estava escondendo algo...ela sempre sabia.
E sabia quando ele estava precisado de alguém, mas Helô gostava de pensar que era precisando dela. A recíproca geralmente era verdadeira.
A delegada estava preocupada com o ex-marido, não tinha como não estar. As coisas estavam tão confusas dentro dela que ficava difícil pensar. Quando fechava os olhos sua cabeça era povoada por momentos deles.
A primeira noite juntos depois de anos sem se ver, as incontáveis recaídas dos últimos meses, a serenata no sofá dela. Algo havia mudado no amor deles, ela podia sentir. E não era ruim, era como se a maturidade tivesse finalmente chegado e o amor deles estivesse na sua fase mais pura.
Não havia o ciúme adolescente ou as desconfianças adultas. Era como se essas coisas tivessem ficado para trás e o amor hoje estivesse lapidado, ali, puro para eles sentirem. Ainda havia o medo, mas ela precisava se convencer que até esse ela o sentia cada vez menos.
O medo incomodava bem menos do que a falta que ela sentia toda vez que ele saia pela porta da casa dela. O ímpeto de gritar "fica" estava cada vez mais forte.
Geralmente Helô procurava desculpas para ir até a casa dele, sempre com a melhor delas na ponta da língua para usá-la assim que ele estranhasse a presença. Hoje não havia desculpa alguma. Havia a falta e a preocupação. O cuidado e a vontade de estar perto. Senti-lo ali, seguro ainda que por alguns instantes.
Parou para pegar um vinho e perdeu certo tempo andando por entre as garrafas. Nos últimos tempos Stenio andava obcecado por relembrar o passado e os pequenos detalhes, algo que eles sempre gostaram de fazer. Eram memórias de toda uma vida juntos, mal conheciam a vida sem a presença do outro ali, do lado. Esbarrou por acidente naquela garrafa.
Não conseguiu segurar o sorriso, se lembrando do ex-marido bêbado no palco, dedicando uma música pra ela. Adora mentir dizendo que ele cantava mal, mas sabia que era mentira. Adorava a voz dele misturada com o som do violão, cantando palavras dedicadas e exclusivas à ela.
Pegando a garrafa, foi até a casa dele. Respirou um pouco fundo antes de bater, sabia que queria estar ali, mas sabia que ela precisaria falar. Expor. Se abrir. E vulnerabilizar para ele. Será que ainda conseguia depois de tanto tempo?
Era fácil quando eram jovens, com ciúmes de colegas na carteira do lado, quando tudo era resolvido com beijos no gramado da faculdade. Mas isso estava no passado e a Helô de hoje era muito mais dura. Divórcios, traições, mentiras, e a vida a haviam deixado assim. Não era fácil mudar.
Mas teve certeza de que precisava estar ali quando viu o olhar triste dele ao abrir a porta. O "Helô" saindo fraco, sem a melodia feliz que geralmente acompanhava o nome dela. Poderia ser a surpresa de vê-la ali, com uma garrafa de vinho na mão, mas algo dizia que não.
Ao contornar a bancada da cozinha ela sorriu ao vê-lo pegar a garrafa na mão, reconhecendo imediatamente qual era aquele vinho. Os inventários da vida passada faziam seu efeito de trazer o riso aos lábios dele, fazendo-o sorrir pela primeira vez naquela noite.
Ela olhou para baixo ainda sorrindo com a lembrança, sentiu o olhar forte dele para ela.
- A gente viveu tanta coisa juntos já – disse o advogado olhando para amada.
Ela finalmente devolveu para ele o olhar. Os olhares travaram tentando no silêncio dizer tudo que precisavam. Ela sempre conseguiu fazer isso bem, e ele era melhor ainda na arte de ler Heloísa Sampaio.