𝟏𝟓

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A aceitação.

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Kaizo contou tudo o que Kalissa precisava saber sobre seu irmão, e que nos últimos anos ele fazia de tudo para que sua vida fosse um verdadeiro incômodo, e que agora precisava ajudá-lo a se curar.
   — Então Julie pode ajudar? E Alexander é um aliado? Ah, é tanta informação...
Ele sorriu.
   — Você queria saber tudo, e tudo é isso, um montão de informação.
   — Teria sido menos problemático se me contassem as coisas.
Ela começou a massagear as têmporas e Kaizo se aproximou, agora ele estava perto demais e isso fez o coração de Kalissa acelerar.
   — Se sentirá melhor se fizer assim...posso?
Sem conseguir responder, ela apenas assentiu, permitindo que ele a tocasse. Ela fechou os olhos enquanto ele massageava suavemente as laterais de sua cabeça, pressionando pontos que a fizeram relaxar quase instantaneamente e a dor diminuir.
   — Se sente melhor?
Ter Kaizo muito perto deixava Kalissa nervosa, mas não de um jeito ruim, apenas era...inquietante. Sua altura – quase o dobro dela – ficava ainda mais evidente desta forma, ela se sentia segura em tê-lo por perto, mas haviam outros sentimentos que ela se recusava a aceitar.
E Kaizo percebeu isso, pois se afastou e deixou um espaço seguro para ela.
   — Você deveria descansar, amanhã ainda precisa ir ao colégio.
   — Queria mesmo poder pensar no quão longe poderia ir. Terminar o colégio, me formar em algo legal, viajar...
Eu não poderia fazer isso. Não mais.
   — Ei. — ela olhou para ele que sorria de uma forma gentil, reconfortante. — Você fará. Eu irei me encarregar disso pessoalmente. Se esse é o seu sonho, o meu é vê-la feliz.
Kaizo...
Antes mesmo que pudesse dizer algo, Kaizo mudou de assunto.
   — Agora é melhor você descansar, terá um dia cheio e precisa estar com todas as energias disponíveis, ok?
   — Tem razão...boa noite, e obrigada por me dizer a verdade.
A verdade...
Ainda há algo que não disse, e eu sinto muito por isso, mas você não saberá. Não pode.

O dia seguinte estava exatamente como todos os outros, Christopher e Liam estavam bastante agitados e pareciam esconder alguma coisa. Hanna notou e alertou Kalissa de que os dois estavam aprontando alguma.
E elas mal podiam imaginar o que era, mas Kaizo sabia. E não parecia nem um pouco contente.
   — Lissa, vem comigo aqui, é rápido.
Christopher sequer esperou uma resposta, apenas aproveitou que Kalissa o seguiu para pegar sua mão e praticamente levá-la até um local tranquilo onde estavam apenas eles dois.
   — Chris, que bagunça é essa? O que vocês dois estão aprontando, hum?
O sorriso de seu amigo a deixou confusa. Um pouco desajeitado, ele retirou uma caixinha simples do bolso e entregou a ela, começando um discurso que deixou Kalissa inquieta.
   — Eu sei que você me disse que eu deveria ter paciência, que certas coisas acontecem com o tempo, e nós temos tempo. Eu disse que iria esperar você mudar de opinião, que faria isso acontecer, e por isso hoje eu queria saber se você aceita ir ao baile do fim de ano comigo, e se não me odiar...poderia cogitar me dar uma chance?
Kalissa teve que ser forte para não demonstrar o quanto tudo aquilo tinha deixado ela nervosa e incomodada. Ela sabia que Christopher não iria desistir, uma qualidade que ela admirava bastante era sua persistência, mas tinha medo de acabar magoando seu melhor amigo.
O que eu faço...?
   — Não precisa me responder nada. — Christopher notou que ela estava tentando processar tudo aquilo, dizer algo, então se apressou em tranquiliza-la. — Só a parte de ir ao baile comigo.
   — Chris... — é só um baile. O que custa, não? — Está bem, isso eu aceito, mas não posso aceitar o presente.
   — Como não? Foi feito pra você!
Ao abrir a caixinha, havia uma pulseira simples com um lindo pingente no formato de um coração, delicado e pequeno de cor vermelha. Era lindo, mas Kalissa sabia que aceitar aquilo daria a ele esperanças que talvez não pudesse corresponder.
   — Ainda sim, é lindo, mas não posso aceitar. Sabe muito bem nossos limites, não sabe?
   — Eu sei... Apenas aceite, como um presente de amigo se isso te deixa mais tranquila.
Ele retirou a pulseira e a colocou no pulso de Kalissa, evitando que ela continuasse pensando demais e negando. Gostaria de saber o que ele pensa agora... Será que está achando que enfim conseguiu o primeiro passo para que eu o aceite?
Isso não pode acontecer...
   — Não pense demais, Lissa. Por favor. Eu sei que você ainda não me deu a chance que quero, não volte a ficar estranha comigo por isso.
Kalissa suspirou e relaxou, sorrindo para o amigo que automaticamente relaxou os ombros e também sorriu.
   — Mas afinal, o que vocês estavam aprontando?
Dessa vez, Christopher gargalhou.
   — Você está preparada pra uma notícia bombástica?
   — Do que está falando?
   — Vem comigo, acho que foi tempo suficiente. Ou ele foi executado, ou está apanhando até agora.
Os dois correram juntos até a área de lazer do colégio, onde todos ficavam quando o sol conseguia vencer as nuvens de chuva, e lá estavam Hanna e Liam, mas numa cena realmente inusitada; Liam estava de joelhos e Hanna parecia prestes a pedir ajuda aos céus para sair dali.
   — Ele não está...
   — Ele está sim. — Christopher a interrompeu, afirmando o mais louco dos seus pensamentos; Liam estava pedindo Hanna em namoro.
Meu. Deus.
Por um momento, Kalissa riu da cena. Estavam longe o suficiente pra que não conseguissem escutar o que diziam, mas suas expressões eram muito claras, e felizmente só eles estavam ali...
Espera...
Eles não estavam sozinhos.
Kalissa olhou discretamente para todos os lados até encontrar uma sombra familiar escondida atrás de uma das árvores, olhando fixamente para Hanna. Harry?
Ele parecia muito sério, mas ela não soube identificar o que exatamente ele poderia estar sentindo. Eles sequer sentem, não?
   — Parece que temos um milagre. — Christopher interrompeu os pensamentos de Kalissa. — Ele conseguiu!
Hanna e Liam se aproximaram deles, e Liam parecia radiante, comemorando com um longo e animado abraço em seu amigo.
   — Quem diria! Sempre soube que por trás de tanta briga havia amor. — Christopher brincou e Liam gargalhou.
   — Eu nunca disse que não gostava.
Ao contrário de Liam, Hanna não parecia tão feliz, mas manteve um sorriso discreto.
   — Podemos falar um pouquinho? — Kalissa a afastou dos dois rapazes empolgados e animados, e notou Hanna parar de sorrir aos poucos. Quando estavam longe o suficiente, ela perguntou: — Por que aceitou?
   — Porque gosto dele.
   — Sabe que não é essa a resposta que eu estou querendo.
Hanna revirou os olhos e suspirou.
   — Preciso parar de sentir algo por alguém que é impossível.
Por um momento Kalissa se sentiu em choque com aquela declaração, mesmo que pudesse ter uma ideia de quem seria, não imaginava que sua amiga admitiria em voz alta aquilo.
E nem que faria algo assim.
   — Você não acha isso uma atitude cruel demais com Liam? O que acontece se você não conseguir parar de sentir isso?
   — Lissa, você não entende?
   — Não, não entendo, por qual motivo você magoaria um amigo?
   — Eu não posso ficar com Harry. Não posso, nem deveria me apaixonar por ele.
   — Mas você já está, e se pensa que gosto desse seu plano mirabolante de usar Liam, pode esquecer que somos amigas. Não vou sentar e ver você magoar nosso amigo. Não conte comigo, Hanna Graynight.
Kalissa virou as costas para Hanna e ignorou seus chamados, assim como ignorou os de Liam e Christopher que ficaram sem entender o que estava acontecendo entre elas. Com um pouco de esforço, a garota encontrou Harry sentado em uma mesa, sozinho, longe de onde estavam os outros.
   — Posso?
Harry olhou para ela e assentiu. Não era necessário ler sua mente para perceber o quanto ele estava infeliz, talvez até irritado, mas muito pensativo também.
   — Sei que não somos melhores amigos, mas... — a atenção de Harry saiu de suas mãos para o rosto de Kalissa. — Está incomodado, não é?
   — E por que acha isso? Não sou humano, então não sento nada tão...humano.
   — Eu sei que não é humano, mas não significa que não sinta algo. Mesmo que seja um pouquinho.
   — Você não sabe nada.
Eu definitivamente não tenho paciência...
   — Tem toda razão, não sei nada, então por que não explica, huh? Me diz, o que eu não sei, Harry Ashgray?
Então ele sorriu minimamente.
   — Você é teimosa... — ele murmurou alto o suficiente para que ela pudesse ouvir. — Eu não estou exagerando quando digo que não sentimos nada humano, vocês são totalmente movidos a emoções antes da razão, e nós somos o oposto, além de não conseguir nem sentir a metade das emoções como vocês. É como olhar algo por um vidro, nós sabemos como é e o que é, mas não conseguimos tocar.
   — Então vocês sentem, mas numa intensidade diferente e mais racional?
   — Resumidamente, é isso mesmo. Há emoções como raiva, decepção, tristeza que conseguimos sentir um pouco mais.
   — E amor? Como sentem amor?
   — Amor é um sentimento quase irracional, mexendo até mesmo com seu sistema cerebral, e...
Kalissa franziu o cenho quando Harry parou por um longo momento, pensando, e então prosseguiu um pouco melancólico:
   — Nos humanos causa reações hormonais, mas para anjos caídos isso não é possível...nossa forma de amar é diferente, é única e eterna, principalmente quando encontramos a pessoa certa. Não nos apaixonamos várias e várias vezes, é apenas uma, e para ser sincero eu acho que nunca estive apaixonado antes para saber de fato como é.
A resposta foi direta, sincera e Harry parecia ter percebido algo naquele momento. No que ele estava pensando...?
   — Isso quer dizer que se sente incomodado com Liam e Hanna juntos?
   — O que me incomoda é a atitude irracional de sua amiga. Aquele rapaz não merece isso.
Então ele...
Harry olhou para Kaizo, e Kalissa também e foi então que entendeu o que havia acontecido. Kaizo disse a ele o que Hanna estava pensando.
   — Geralmente digo a Kaizo para não ler os pensamentos alheios, principalmente os de Hanna, mas eu precisava entender tal atitude...agora que sei, me sinto mal por seu amigo, mesmo que ele não tenha nenhum pingo da minha afeição.
Ela sorriu.
   — E eu tenho?
Ele riu.
   — Não fique se achando, sabe que eu não vou lhe dizer o que quer ouvir.
   — Isso não significa que você não goste de mim, então por mim já está ótimo. É muito bom contar com sua amizade, Haz.
   — Haz? Você é mesmo muito inconveniente.
Kalissa se levantou pronta para ir embora, mas Harry a chamou.
   — Obrigado, Kalissa. Eu também gosto de poder contar com sua amizade.

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Kalissa não falou com Hanna, evitando durante todo o dia, e mesmo quando Christopher perguntou o que estava acontecendo ela apenas mudou de assunto. Durante o percurso até o Abrigo, ambas ficaram em um silêncio muito incômodo, mas nenhuma das duas deu o braço a torcer para quebrar o clima ruim entre elas. Já no escritório de Alexander, Hanna apenas falou a ele que estaria esperando na sala de treino e deixou os dois sozinhos.
   — Sinto uma coisa ruim entre vocês, estou enganado?
   — São assuntos que não valem a pena ser mencionados.
O rapaz a sua frente não insistiu, mudando de assunto.
   — Quero dizer que eu decidi treinar você a partir de hoje, e também vou contar com uma ajudinha especial que fará toda a diferença, já que você não tem a preparação física necessária e nosso tempo é relativamente curto.
   — Ajudinha?
   — Kaizo Morgenstair e Harry Ashgray vão ajudar, é uma colaboração inusitada, mas muito eficaz. Tudo bem pra você?
Então eles... Que incrível!
   — Achei que eles fossem proibidos de entrar aqui.
   — Não exatamente proibidos, apenas não é comum e aceitável. Conforme for aprendendo vai notar que desde o começo nossa história com os Caídos é carregada de intrigas, talvez até mal entendidos, mas que ensinaram a não confiar neles. São chamados de traidores, rebeldes, criaturas egoístas e que não merecem tratamento amigável.
   — Isso é tão... Elitista.
Alexander riu.
   — Eu diria que é mais preconceituoso do que elitista, mas de fato há muitos que se acham superiores aos Caídos. Uma pequena porcentagem, felizmente.
   — E mesmo assim vai deixá-los vir aqui?
   — Eles sabem muito bem o que esperar dos Caçadores, mas isso não importa e nem os incomoda. Tudo o que querem é ajudar você, e pra isso estão dispostos a vir e ficar entre tantos Caçadores apenas por sua causa. É esse o efeito que você causa, Escolhida. Você irá unir todos de uma forma que o mundo jamais viu, quebrando regras e tabus, apenas com sua existência.
Kalissa sentiu um leve arrepio percorrer todo seu corpo, mas não era ruim, por isso ela sorriu para Alexander.
   — Que assim seja então.
Parecendo satisfeito com a resposta, o rapaz abriu um largo sorriso.
   — Meus parabéns, este é o primeiro passo para você. A aceitação. Está pronta para começar seu treinamento, Blackheart?
   — Estou. Vamos começar.

A História de Uma Garota (Livro 1)Onde histórias criam vida. Descubra agora