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O sussurrar das chamas.

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Não houve chamado dos bombeiros simplesmente porque aquele acontecimento sequer havia sido presenciado pelos olhos humanos. Quando o fogo se dissipou, um pequeno grupo decidiu inspecionar os restos para entender melhor o que havia acontecido ali. Kastian, Harry, Kaizo e Valerie deixaram Kalissa e Julie com Hanna e Liam. As duas estavam em estado de choque, principalmente a ruiva que tremia e não falava absolutamente nada, apenas encarando o nada com um olhar perdido.
   — Lissa, beba um pouco disso. Vai te fazer bem. — Hanna entregou um copo com uma bebida quente para Kalissa que segurou com as duas mãos, mas não bebeu. Ela encarou o líquido, uma sopa, sem saber de onde a amiga havia conseguido.
Ela olhou na direção de Julie que estava conversando baixinho com Liam enquanto ele parecia muito empenhado em ouvir e confortar a mulher. As palavras de Kastian surgiram em sua mente, lembrando que Julie estava sentindo tanto quanto ela, afinal elas tinham aquele laço de Irmandade.
   — Eu não quero que você sofra por mim assim. — as palavras foram ditas tão baixa, a voz falhando, mas Hanna entendia exatamente do que ela falava.
   — Não vamos passar por isso, deve haver outra forma de fazer as coisas, e nós vamos descobrir. Tudo vai ficar bem, eu sei disso.
Mas Kalissa sabia que não era verdade. Elas sabiam.
Kaizo se aproximou com Kastian em seu encalço, enquanto o restante ia até Julie. Eles pareciam assombrados, Kastian estava com um olhar sombrio e cheio de fúria. Eles descobriram algo.
   — O que descobriram? — Hanna indagou assim que os gêmeos se aproximaram.
   — A causa do incêndio não foi acidental, foi provocada, e de dentro pra fora. — Kaizo falou devagar, olhando para Kalissa e depois para Hanna. — Foi Clarice quem começou o incêndio.
Como?! Por que...!?
   — Ao que posso deduzir — Kastian prosseguiu, notando o olhar de Kalissa e continuando a explicação —, Clarice estava lidando com algo e achou que essa era a única forma de resolver. Havia algo dentro da casa que ela não queria deixar sair. Há uma proteção que foi ativada, e bloqueou a saída.
Mas só que estava com ela era...
   — Julie nos disse que as proteções da casa impediriam qualquer coisa ruim de entrar e sair ileso, talvez algo tenha entrado e tentado sair, mas não pôde e acabou prendendo ambos na casa. — Hanna também parecia confusa com a informação, mas seu olhar mudou conforme percebeu o mesmo que Kalissa. — Lucian estava na casa quando saímos.
   — Quem? — Kastian perguntou, mas quem respondeu foi o irmão:
   — Lucian Bluehood. Amigo de Clarice.
Kastian parecia ter tomado um choque, e piscou várias vezes antes de dizer com a voz baixa:
   — Este homem estava trabalhando para os Anciãos.
Aos poucos, Kalissa começou a conectar as coisas e entender o que realmente estava acontecendo esse tempo todo, bem diante de seus olhos, que ela era tola o suficiente para nunca ter percebido.
Lucian era a pessoa que sempre estava por perto, mesmo quando não estava presente, e ele parecia muito interessado que Clarice contasse a verdade o quanto antes. Ele sabia que Clarice estava planejando fazer o contrário do que os Anciãos desejavam, e por isso estavam sempre discutindo, e talvez...talvez sua tia tivesse percebido naquele último momento que a única forma de conter ele...
Meu Deus...
Lucian... Lucian era o responsável por ativar as proteções. Ele era o inimigo que Clarice enfrentou e se sacrificou para evitar que ele pudesse escapar.
Um soluço, depois outro e novamente Kalissa chorava ao perceber tudo aquilo, a decepção e a dor de ter perdido sua única família...era culpa deles. Eles avisaram, foram muito claros, ela iria pagar pela afronta.
   — Sinto muito por tudo isso, Kalissa. — Kastian murmurou enquanto Hanna abraçava a garota, tentando conforta-la.
   — Precisamos levar ela pra algum lugar seguro de verdade. Se estivermos certos, os Anciãos irão aparecer em breve procurando por ela.
   — Onde pretende levá-la? — Kaizo indagou, ele havia tirado o paletó e a gravata, sua camisa suja de fuligem e os cabelos brancos também.
   — O Abrigo é uma opção, Alexander não deixaria que eles chegassem perto, mas não pode ir contra eles. Talvez...talvez seja melhor ela ficar na casa de vocês, eu vou avisar Alexander e pedir que ele vá até lá depois.
   — Levaremos Julie e ela para casa então.
Kaizo estendeu a mão para Kalissa que segurou, e antes que pudesse dizer algo, ele a abraçou forte. Ela conseguia sentir o calor e o conforto daquele abraço, a segurança, mas ainda queria chorar por tudo aquilo que estava acontecendo.
   — Vão indo, eu encontro vocês lá em meia hora. — Hanna beijou a testa de Kalissa como forma de despedida.
   — Leve meu carro. Vamos com o de Julie. — Kaizo entregou as chaves a ela que agradeceu com um sorriso mínimo, os saltos ecoando alto quando ela foi até Julie para avisar o restante do que seria feito. — Você está tremendo.
Kastian assentiu ao pedido silencioso de Kaizo, correndo para buscar o paletó do irmão e envolver Kalissa nele.
   — Melhor irmos logo, irmão.
Liam se aproximou, correndo e ofegante, o celular na mão indicava uma ligação recente que havia se encerrado. Polícia.
   — Eu sei que não é uma boa hora, mas você precisa saber de mais uma coisa, Lissa.
Ela olhou para ele, ansiosa. Liam parecia atordoado, angustiado e os olhos vermelhos com as lágrimas contidas.
   — A polícia acabou de ligar avisando que encontraram o carro de Christopher capotado perto da estrada que leva para casa dele.
Não. Não, ele não, ele não...
   — Malditos... — Kastian xingou ao perceber Kalissa fraquejar mais uma vez, desta vez Kaizo a segurou firme contra seu corpo. — O que houve?
   — Morto com um golpe pelas costas, um buraco do tamanho de um punho bem no meio do peito.
Kalissa chorou mais uma vez. Isso não pode estar acontecendo, não pode!
   — Os Anciãos? — Kaizo opinou, afagando as costas de Kalissa.
   — Não — Kastian respondeu, sua expressão era neutra, mas ele olhou para Kalissa como se pedisse desculpas. — Aron. Isso é obra de Aron.
O corpo de Kalissa tremeu, tremeu, e ela sentia o fogo sussurrar mais uma vez: "durma criança, chega de sentir dor, cuidarei de você agora."
E ela apagou nos braços de Kaizo.

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Três dias depois.

Vozes podiam ser ouvidas. Algo frio passou por seu corpo, a magia familiar de Adaely, e depois mais vozes que falavam algo que ela não conseguiria distinguir o que ou quem era.
Quanto eu dormi? Tudo foi um sonho?
"Seu corpo está pronto, criança."
"Acorde. A última hora se aproxima."
   — Ela abriu os olhos! Está acordada! — Liam gritou, chamando os outros para perto enquanto Adaely o repreendia com uma expressão de raiva, que logo se dissipou ao olhar para ela.
   — Bem vinda de volta, querida criança. Como se sente?
Ela abriu a boca para falar, mas sentia sua garganta seca. "Água..."
Hanna apareceu com um copo d'água e uma jarra em outra mão, entregando a amiga. Ela não sabia dizer pra quem havia dito aquilo, mas ficou feliz, por ter sido Hanna. Sua amiga, sua irmã.
Kalissa bebeu o primeiro copo d'água, o segundo e o terceiro. Estava sedenta, como se todo seu corpo estivesse seco e sido exposto ao calor por várias horas.
   — Consegue falar agora? — Valentin perguntou.
Todos estavam olhando para ela, ao redor de onde estava deitada, que era sua cama e não era.
   — Foi tudo um sonho?
Sua voz ainda saiu baixa, mas audível. Ela olhou com esperança para todos, mas o sentimento sumiu ao perceber as expressões tristes de lamento de cada um ali. Não era um sonho, foi real.
Minha tia e Christopher...mortos.
Ela balançou a cabeça em negação e sentiu algo estranho. Seu corpo todo estava estranho.
   — O que aconteceu comigo?
   — Veja você mesma.
Adaely a ajudou a se levantar e ir até o espelho próximo, ninguém saiu do quarto, seus olhares apreensivos demonstravam o quanto estavam esperando aquele momento.
E ela entendeu o porquê.
Ela usava uma camisola fina de seda que mostrava as marcas em seu corpo, símbolos em vários lugares brilhando como fogo em sua pele, seu cabelo vermelho estava ainda mais vivo, sua pele parecia saudável e corada, mas ela sentia o poder como uma espada em suas mãos, seu corpo, tudo nela exalava poder. Ela havia se tornado o próprio fogo.
A última hora estava próxima, era o que o fogo havia sussurrado para ela antes de sua voz sumir.
   — Parece que você estava sendo preparada, forjada por seu próprio poder enquanto dormia, e agora ele e você são apenas um. — Adaely explicou, sorrindo maravilhada. — Você está pronta de verdade agora.
Eu estou pronta.
   — O que faremos então? — Kastian perguntou para ninguém em particular.
Quando Kalissa respondeu, sabia com certeza o que deveria fazer, e que precisava estar sozinha. Ninguém iria concordar, mas era sua forma de evitar mais desastres e perdas, eu preciso fazer isso por vocês. Todos vocês.
   — Preciso falar com Alexander e Adaely, apenas nós três.
   — Isso é ótimo, porque ele está vindo para cá agora.

Seria impossível conversar sem que o restante ouvisse, então Adaely cuidou para que isso não acontecesse enquanto estivessem ali. Alexander lhe deu um breve abraço, murmurando um "meus pêsames" que ela apenas assentiu em recebimento.
   — O que queria falar conosco, menina?
E ela foi direta.
   — Alexander, eu sei que Jeremiah é seu irmão, e nós sabemos que ele provocou o que aconteceu com minha tia. Graças a ele e Lucian, que eu ainda não entendo o por quê, ela se foi... — ela fez uma pausa, respirando fundo antes de prosseguir. — Eu tomei uma decisão e sei que apenas vocês não irão me impedir ou julgar por fazê-lo.
   — Antes de qualquer coisa... — Alexander engoliu em seco antes de continuar —, eu sinto muito mesmo por isso. Jeremiah passou dos limites, os Anciãos... Eles não deveriam ser assim.
   — Um bom líder guia seus subordinados para um bom caminho, o mau corrompe até mesmo os corações mais puros.
Kalissa assentiu para o que Adaely disse, concordando. Ela sabia que não era culpa de Alexander, e não o culpava. Jamais.
   — Qual sua decisão, menina? Estamos ouvindo.
   — Eu irei até Jeremiah e faremos um acordo, mas nos meus termos.
Os dois trocaram olhares preocupados, mas não questionaram ou criticaram, apenas Adaely pegou as duas mãos de Kalissa, olhando em seus olhos de um jeito muito sério antes de dizer:
   — Apenas tome cuidado com eles, e não confie totalmente em seus acordos, porque assim como eles mentem, também enganam e gostam de ludibriar as pessoas. Fique atenta.
   — Eu ficarei bem. Preciso me apressar porque as chamas me disseram que a hora está chegando, e eu preciso ter certeza que todos ficarão bem não importa o que me aconteça.
Me perdoem amigos, Kaizo, mas eu não vou deixar que nenhum de vocês morra por mim.
Chega.

A História de Uma Garota (Livro 1)Onde histórias criam vida. Descubra agora