Aceitação – egoísmo, fingimentos e coragem
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A sala de treinamento era enorme, assim que entraram Alexander explicou que a primeira parte se tratava de uma espécie de arsenal para treino; os equipamentos variavam de acordo com as habilidades ou desejo da pessoa que iria treinar. Desde bastões até pedaços de madeira talhados como lâminas para simular adagas. Ele explicou também que aquele equipamento era de uso dos mais jovens, as crianças Caçadoras que precisavam aprender sem se machucar – por um momento Kalissa se sentiu ridícula ao ouvir aquilo, mas tentou não pensar demais em sua vergonha por usar o equipamento que uma criança usaria.
Ao chegarem onde realmente aconteciam os treinos, ela não pôde evitar sua expressão de surpresa. Haviam alguns caçadores ali, um ou dois mais jovens que ela, e todos estavam treinando com afinco fazendo coisas que Kalissa duvidava fazer igual.
— Alexander, eu não posso fazer isso.
— Claro que pode. — ele parecia muito confiante, com um sorriso de alguém que estava escondendo algo. — E você ainda não vai aprender o combate. A prioridade é seus poderes, aprender a controlar e usar eles de forma segura pra você e os demais.
— E quando você começa a me ensinar?
E então ele riu.
— Eu? Não sou eu que vou ensinar você.
— Como? Você tinha dito que...
— Serei responsável pelo seu treinamento, mas não tenho as habilidades necessárias para começar isso, então chamei alguém que pode.
— Quem?
— Eu estive procurando por meses, mas ela aparece quando quer e ajuda quem ela quiser. Foi difícil, mas bastou dizer que era para você que ela apareceu e vai colaborar.
— Quem é ela?
Alexander a guiou para fora da sala de treinos até sua sala, e em meio a várias estantes enormes abarrotadas de livros estava uma um pouco peculiar. Ele puxou um dos livros, abrindo uma porta secreta, e passando por um túnel um pouco úmido demais para ser seguro, chegaram num campo aberto e Kalissa ficou confusa se ainda estavam no Abrigo ou não.
— Nós saímos? Achei que não era seguro aqui.
— Essa floresta faz parte da reserva, território dos Caçadores. Aqui ainda é seguro, pelo menos enquanto ainda for possível nos manter seguros em algum lugar.
Além das árvores, do pequeno lago e das plantas de todos os tipos – e que Kalissa desconhecia já que seu forte definitivamente não era a botânica –, havia uma cabana simples. Antes que pudessem alcançá-la, a porta se abriu e uma mulher saiu de lá.
— Vocês estão atrasados. — foi a primeira coisa que ela disse, sem sequer sorrir para eles. — Principalmente você, menina. Está atrasada, e sequer está pronta.
— Kalissa, essa é Adaely, a profetiza.
Profetiza?
— Eu não uso mais este nome, menino caçador. É apenas Ada.
— Mil perdões, Ada. Acredito que Kalissa também não conhece seu nome antigo, por isso não haveria problema em dizer.
— Essa menina não sabe de nada. Faz ideia de quem você é, menina?
Kalissa olhou para Alexander sem saber o que exatamente deveria responder. Devo dizer meu nome? Dizer quem sou? O que faço?
— Eu... Sou Kalissa Blackheart.
A mulher olhou para ela com desdém.
— Não foi o que eu perguntei.
— Sou...a escolhida?
E então Adaely gargalhou em deboche. Ela tinha aparência de uma mulher em seus quase 60 anos, cabelo grisalho e olhos da mesma cor, e mesmo com o tempo tentando desgastar sua aparência ela continuava bela, dando um vislumbre do quanto era bonita mais jovem.
— Você nem faz ideia de quem é ou do que é. Está perdida, ou se nega aceitar a verdade. — ela olhou para Alexander que mantinha sua postura séria. — Eu não vim até aqui para isso. Essa garota não serve.
— Mas Ada, você disse...
— Eu disse que iria ajudar a treinar a Escolhida, mas o que vejo aqui é uma garotinha desesperançosa e sem qualquer fé em quem é. Se ela não acredita, não sou eu quem vai fazê-la acreditar. Vão, e só voltem quando a Escolhida estiver pronta para começar.
— Mas você está aqui para me mostrar como fazer as coisas! Como espera que eu já saiba algo se apenas descobri isso recentemente?!
Adaely olhou para Kalissa, dando um passo em sua direção de forma ameaçadora.
— Eu estou aqui para ajudar com suas habilidades, e esperava que tivesse pelo menos uma noção do que você é, da sua importância e papel, de quem você é. Você ainda não aceitou nada disso, garotinha, e isso é o responsável pelo seu descontrole, então quando estiver pronta de fato para fazer isso, eu irei ajudar.
As palavras dela foram como um tapa, ela sabia de tudo aquilo mesmo sem nunca ter visto Kalissa antes. Tudo que ela havia dito era verdade, uma verdade que estava tentando ignorar achando que isso seria suficiente para fazer o que precisava sem necessariamente aceitar isso.
E ela estava errada.
— Está bem.
Kalissa se afastou o suficiente, e olhou para uma árvore seca próximo a cabana. Isso deve servir. Vamos lá... Ela fechou os olhos, sem saber direito como fazer aquilo, apenas desejou com todas as forças mostrar que Adaely estava errada sobre ela, mas nada acontecia. Nada.
— Menina fraca — Adaely murmurou. Num movimento rápido, ela se aproximou de Kalissa e agarrou seu pescoço erguendo-a do chão enquanto a sufocava. — Você dúvida de suas capacidades, desdenha de sua importância para todos, mas tem a ousadia de vir aqui pedir a minha ajuda? Nós é quem precisamos de ajuda com uma salvadora tão patética e orgulhosa. Na vida todos vivemos tentando sobreviver da melhor forma que pudermos, e tudo o que fizeram foi proteger você, quando aceitar isso, estará no caminho certo e então eu poderei ajudar.
Quando Adaely largou seu pescoço e a deixou cair no chão, Kalissa tentou com todas as forças segurar as lágrimas de raiva, ela não esperava que alguém desconhecida fizesse isso. Dizer a verdade de uma forma tão fria e cruel. Eu odeio você, ela pensou, mas sua mente a corrigiu rapidamente. Eu odeio você por saber disso.
— Kalissa, você está bem? — Alexander se aproximou, parecia preocupado, mas seu rosto demonstrava uma certa satisfação. — Vamos. Vamos embora.
— Volte apenas quando estiver verdadeiramente pronta, garotinha fraca!
Ela deixou Alexander levá-la de volta ao Abrigo, o caminho todo em absoluto silêncio enquanto sua mente repassava as palavras de Adaely várias e várias vezes, em cada vez ela sentia ainda mais vontade de gritar. Alexander a colocou em um sofá perto de sua mesa, já em seu escritório, indo até a mesinha de chá e servindo um pouco numa xícara que ele entregou a ela.
— Você sabia que ela faria isso, não é? Eu vi sua satisfação.
A pergunta era direta, teria pego outras pessoas de surpresa, mas Alexander sorriu.
— Não ouse dizer que eu lhe enganei, não contei absolutamente nenhuma mentira, apenas omiti o fato de que sabia o quanto você era hipócrita.
— Hipócrita? Eu?!
— Diga-me, Kalissa... — Alexander puxou uma cadeira e sentou frente a frente com ela antes de concluir sua frase: — Do que mais precisa para deixar de fingir que se importa com o que pode acontecer para começar a se importar de verdade. Sei que deve pensar no quanto você tem a perder, e de fato isso é terrível, eu entendo.
— Não entende não.
— Claro que entendo, você quer ter um futuro também, e gostaria que houvesse outra forma de fazer as coisas. É injusto, não? Você ter que se sacrificar por pessoas que você nem conhece, por várias almas que nunca teve nenhum contato, não é isso?
Kalissa se manteve em silêncio, mas Alexander não precisava de uma resposta.
— Ouça, existe uma diferença entre achar tudo isso injusto e ser egoísta, e você querida Kalissa está pensando de forma egoísta, enxergando apenas aquilo que lhe convém. Você ao menos sabe sua importância? Sabe sobre esse mundo, o seu mundo, e que pode negociar?
Ao citar aquilo, Kalissa olhou para Alexander surpresa.
— Negociar? Do que está falando?
— Há muitas coisas injustas que você ainda desconhece, não é apenas o seu destino que foi traçado de forma injusta, mas você é a única pessoa que pode resolver as coisas, eles devem isso a você. Fariam qualquer coisa para que você complete sua missão.
E naquele momento Kalissa percebeu que ele tinha razão, e ela nunca havia pensado nisso. Ela era a peça importante ali, então poderia fazer exigências. Havia muitas coisas que ela precisava aprender...
— Espera, você disse que existe mais coisas injustas que eu desconheço? Tipo o que?
— Você precisa aprender sobre nosso mundo primeiro, entender como tudo funciona e assim poderá barganhar aos seus termos. E por favor, dessa vez sem fingimentos.
— Você tem razão, me desculpe. Eu não posso exigir coisas sem nem saber o quê. Há tanto pra aprender...
— E pouco tempo. — ele acrescentou rapidamente. — Primeiro, você deve aprender sobre esse mundo, e saber sobre a profecia, entender como pode exigir e o que pode ser exigido. Saber negociar antes de começar um acordo.
Kalissa olhou em volta enquanto concordava. Haviam muitos livros ali, e ela sabia que histórias sobre as criaturas desse mundo também estavam naquelas estantes.
— Preste atenção em uma coisa — ela olhou para ele, desta vez ele estava realmente preocupado e muito sério. — Os Anjos e os Anciões querem resolver o problema principal que é acabar com Aron, e fariam qualquer coisa para alcançar esse objetivo, isso pode ser bom para barganhar com eles, mas deve lembrar que isso também significa que eles fariam de tudo para chegar nesse objetivo. Deve estar preparada pra tudo.
— Eu não entendo, por que parece saber de coisas que não sei e mesmo assim não me conta?
— Tudo o que sei é que ambos tem um objetivo, e eles não tem emoções, sendo assim não terão piedade de colocar qualquer coisa nessa missão desde que ela atinja a meta deles. Lembre-se sempre disso.
Kalissa não ousou perguntar mais, ela desconfiava que mesmo sabendo de algo ele não iria dizer. Ele está totalmente certo. Eu devo me preparar de verdade...
Adaely, obrigada.✦✧✧✧✧✦
— Tia Clarie! Julie! Senti tanta saudades!
Kalissa abraçou as duas com todas as suas forças. Ela havia acabado de chegar do colégio, e ao sentir o cheiro de panquecas correu para a cozinha sabendo que sua tia estava em casa.
— Minha querida!
Hanna apenas observou tudo com um sorriso satisfeito, mas assim que Kalissa soltou as duas, Clarice e Julie a puxaram para um rápido abraço.
— Obrigada por cuidar da minha garotinha. — Clarice agradeceu.
— A nossa garotinha. — Julie corrigiu e as quatro riram. — Como foi, tudo ficou bem?
— Bom...
Hanna resumiu todos os fatos necessários. Enquanto comiam, ela contou tudo o que precisavam saber, e Kalissa acrescentou contando sobre o encontro com Adaely e as coisas que Alexander a alertou.
— Nós também descobrimos algumas coisas que podem ser úteis, mas o que este rapaz disse é algo que confirmamos; os Anciões não são cem porcento confiáveis. Devemos ter cuidado.
— E Lucian? — Hanna perguntou, notando sua ausência.
— Ele ficou, disse que tentaria descobrir mais coisas, mas se a profetiza está aqui não deve ser necessário que ele fique lá. — Clarice respondeu, parecendo um pouco aliviada em falar de Adaely.
— O que sabem sobre essa mulher? — Kalissa indagou.
— Adaely é uma mulher muito poderosa, a mais antiga de nós feiticeiros, e a primeira. — Julie respondeu, seu tom de voz era cheio de respeito pela mulher.
— O detalhe que você não disse é que Adaely não é apenas a primeira feiticeira, ela também é irmã do grande amor de Aron, e o odeia por ter sido o causador de sua morte.
Kalissa e Hanna ficaram boquiabertas com aquela informação.
— Ela é bastante poderosa, mas ao longo dos anos enfraqueceu repentinamente, como uma doença. — Julie explicou. — E nós nunca adoecemos.
— Então...o que está acontecendo com ela? — Hanna se apressou em perguntar.
— Tudo indica que isso também é culpa dos Anciões. Ela começou a usar a magia tentando buscar uma forma de acabar com Aron, mas tal magia era proibida. Um pecado. — a feiticeira parecia enojada enquanto falava, e de fato era compreensível; dizer aquilo de si mesma era revoltante. — Somos muito mais humanos que eles um dia sonham em ser, e mesmo assim nos chamam de impuros, nos privando até de ir a lugares que consideram santuários onde apenas aqueles com sangue de Caçador ou um Anjo pode ir.
— Adaely estar sob proteção de Alexander significa que ele reconhece que isso é injusto, e está dando a chance dela ajudar a fazer aquilo que ela não conseguiu, destruir Aron de uma vez por todas.
E então Kalissa se lembrou das palavras dele: "Há muitas coisas injustas que você ainda desconhece, não é apenas o seu destino que foi traçado de forma injusta, mas você é a única pessoa que pode resolver as coisas".
— Eu preciso aprender tudo sobre nosso mundo, e irei até os Anciãos para negociar com eles quando estiver pronta. — as três olharam para Kalissa um pouco surpresas por seu tom de voz tão decidido. — Chega de injustiças.
Elas sorriram orgulhosas, e Kalissa também sorriu. Seu treinamento agora teria que ir além, não era apenas uma questão de vida ou morte e sim da liberdade de todos aqueles que merecem viver em paz.
Agora eu entendo. E eu aceito.
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A História de Uma Garota (Livro 1)
FantasíaO primeiro livro da trílogia "Escolhidas" ━━━━━━━━》❈《 ━━━━━━━ Kalissa Blacke tinha o mesmo sonho todas as noites, o pesadelo que assombrava e atormentava sua vida desde que conseguia se lembrar. Tudo ficou ainda mais complicado quando se viu em meio...