Astarco estava dormindo em seu abrigo às margens de um rio quando foi acordado pela manhã e levado à força para a casa do governador. Ele não teve alternativa, apenas foi carregado. Ao chegar próximo do governador, Astarco sorriu e se curvou, depois ele disse:
- Já que tomas meu tempo, deixe-me comer? Os guardas foram bater nele, porém o governador estendeu a mão e disse:
-Tu não tens medo da minha autoridade? O velho se levantou e disse:
-De minha parte, tens a verdade. O medo não é virtude, nem deveria ser considerado objetivo dos governantes perante os governados. Já que o medo também impõe o desejo de mudar, eu te digo que é melhor governar por exemplo de virtude do que, por exemplo de medo! O governador apenas pediu para o servo trazer comida. Ele se senta e Astarco reclama:
- Tu vais sentar diante da minha idade avançada? Eu lhe digo que antes que possas ver o alvorecer, estarás com meus cabelos brancos. O governador fica intrigado, ele pede uma cadeira para o velho, que senta e logo pergunta:
- Muito bem, senhor governador, agora que contemplei sua educação, me sinto inclinado. Por que me chamas em sua casa? E por que não estás no fórum?
O governador então responde com autoridade e solenidade:
- Senhor Astarco, sou Marco Antonino de Dacia. Eu te chamei porque preciso examinar-te. Alguns dizem que você é um agitador, uma ameaça para Roma, para os costumes e para os Patrícios. Quero saber se é verdade. Astarco responde seco:
- Sim, é verdade. O homem come pão e bebe leite de cabra, deixando o governador Marco confuso e desarmado. Ele responde:
- Senhor Astarco, tal crime é punível com a morte. Tu sabes disso? Astarco olha para Marco e responde de forma séria e franca:
- Sim, eu conheço as leis de minha pátria. Sou um agitador, pois eu agito a racionalidade do povo. Pois suas mentes estão anestesiadas. Senhor Marco, não vê as virtudes? A sabedoria é o caminho para a grandeza. Os Patrícios me querem morto, pois não aceitam a verdade. Não querem alcançar a sabedoria, apenas querem o pão e o circo. O governador pega um cálice, o fato é que ele sabe. Em suma, a nobreza estrangula o povo. Astarco continua:
- Meu amor por este povo é enorme. Eu digo que o povo precisa das virtudes, e seus governantes precisam delas também. Pois sem elas, estamos indo para um abismo. O governador rebate:
- Nossos cofres estão cheios, Astarco. Não vejo o abismo. Astarco então diz:
- Mas o povo sangra. Ele custa para encher seus cofres. Ele sofre. Tu sabes qual virtude nos aproxima dos deuses? Marco então fala para o velho, respondendo:
- Já sei onde vamos chegar, mas a melhor de todas as virtudes é a justiça. Eis que sou o mais justo de todos. Astarco então toma mais leite e come geleia. Depois fala:
- Entendo, então quero perguntar.
- Um homem cujo o crime era roubar deve ser punido com a morte, mesmo que ele seja levado a cometer tal infração para alimentar sua família? O governador Marco olha com curiosidade e pensa. Afinal, tal pergunta é tão simples e singela para ele. Depois de refletir, ele responde com orgulho:- Sim, senhor Astarco, vejo que sua pergunta não me causa nada. Eu sou justo e sigo a lei e a disciplina. Portanto, eu puniria o ladrão de acordo com a solenidade e peso da lei romana. Astarco faz uma negativa com a cabeça e diz:
- Mesmo que a lei seja injusta, governador? Porque vejamos, ele está com fome! Como conciliar a lei do homem com a Justiça celeste? O governador fica assombrado, ainda sim ele não entende como a lei poderia ser injusta. Então pergunta:
- Em que ponto a lei poderia ser injusta? Se todo o povo a segue, como você pode me dizer que uma lei tão fundamental como punir o roubo pode ser injusta? Então Astarco pega uma uva e diz:
- Grande governador, agora você vê. Não é a lei que está errada, mas sua aplicação. Pois ela não contempla o motivo do tudo ser justo e andar na via larga. Ou seja, ser capaz de vislumbrar todos os pontos, ser capaz de medir todos os pormenores. Sendo assim, o justo deve ser moderado em julgamento e interpretação. Astarco então olha para a abóboda da casa do governador, ali vê os deuses romanos, quase como se estivesse em transe. Ele diz:
- Mestre Marco, eu não disse que sua interpretação está errada. Eu creio na universalização da lei. Porém, ao enxergar o todo, causaria a arbitrariedade. O jurista precisa saber das reais fontes do ocorrido. E a partir deste ponto, usar a lei. Também vos falo, a lei sendo grande ferramenta de educação. Pois ela deve ajudar o povo, nortear o povo rumo às virtudes e valores éticos. Também deve ter grande poder de inclusão, tornando possível que a sociedade possa ter força e regular a lei e a política.
O governador então percebe e questiona Astarco:- Me diga, quais são as qualidades que preciso ter para ser o melhor líder de todos?
Astarco então se vira e olha para a janela. Lá ele vê o mercado, sua riqueza, seus bens, mas também vê a miséria e outros mendigos como ele. Então responde:- Primeiro, devo alertar sobre o problema em sua frase. Não faz sentido você se preocupar em ser o único melhor. Pois, se tem algo que afasta o conhecimento, é acreditar que a vida é um pódio. Se você for o primeiro, não vai aprender com os outros. Ele come mais uvas e diz:
- Ah, eu posso apenas enumerar as virtudes, mas isso não seria honesto. Eu vou explicar tudo. A primeira virtude é a compreensão. Afinal, um bom líder deve ser capaz de ver e entender seu povo, ver e compreender o que o cerca. Ser empático e compreensivo darão repertório para desenvolver o território e as leis.
Astarco então respira e continua seu discurso:
- Outra virtude importante é a moderação. Ser equilibrado, tanto no campo das ideias. O mundo mental precisa ser trabalhado, pois senão seria refém dos sentimentos. O líder moderado está em equilíbrio consigo mesmo. Suas ações são retas, objetivas e não possuem excessos. Os excessos são o mal de Roma. A opulência causa um efeito terrível. Ela nubla os pensamentos, desvia a ótica da razão para a via do desejo. Os campos sentimentais devem ser trabalhados. O líder moderado não se deixa levar por emoções. Ele usa a razão e sua experiência, agindo de maneira contida. Os excessos do campo sentimental podem gerar arbitrariedade.
O governador Marco está congelado. É tamanha a sua curiosidade e vontade que ele não interrompe o velho, que continua:
- Em conjunto com a virtude do moderado, ele precisa ser racional. Estar sob o regime da razão, da lógica, permite que ele avalie todos os passos de maneira que podem ser medidos. Ele é palpável em pensamento e ação. Como racional, ele julga seu próprio pensamento. Suas ações são sólidas e concretas. Outra virtude obrigatória é a ética. Imagine ter todas estas qualidades e não ser ético. Ser uma pessoa mentirosa. As chances de fracasso são muito altas. A ética permite que a justiça more no coração do líder. Um líder deve ser verdadeiro em pensamento, sentimentos e ação. Caso contrário, é hipócrita ou então não deseja que seus seguidores sejam iguais em comportamento. Ser ético é ser uma pessoa que sabe onde está e como funcionam as coisas. Ele não tomaria algo que não pertencesse a ele. Ser ético é evocar as virtudes da bondade e ser parte de uma força maior. O ético examina seus passos, seguindo a bondade e a fraternidade. Afinal, somos seres de bondade e união. Todos desejamos o melhor. Não existe homem sobre a terra que não queira estar ao lado de uma pessoa honesta. Sendo assim, a ética da forma e une todas as virtudes. Ser ético é ser o mais humano e bondoso possível.
Astarco então pergunta ao governador:
- Bom, estas são, pelo menos, as qualidades mais importantes. Claro que a bondade, paciência e leveza são importantes, mas, na minha opinião, são sinônimos de ética. Eu pergunto, sou punível?
O governador sorri e responde:
- Não tenho como punir o senhor. Isso seria o testemunho de ignorância. Mas não posso mantê-lo aqui. Portanto, vou te dar cinco dias para sair de Roma e ir para outro lugar. Os Patrícios te querem morto. Mas se você for exilado, eles vão parar. Eu agradeço. Você me fez bem, sinto que aprendi muito.
Astarco agradece pela sinceridade e sai da casa do governador, rumo para o horizonte.
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Os discursos de Astarco
Historia Cortauma coletânea de discursos filosóficos em formato de contos, onde o personagem Astarco, vive como um mendigo na era de Roma, questionando o sistema e o pensamento da época, com muitas metáforas, será que seus discursos podem ser usados hoje em dia ?