Cap 14 - Expectativas Bem Maiores

39 5 0
                                    

Enquanto se divertia nas festas julinas com as amigas e buscava seu sapo encantado pelo Tinder, Laura acabou encarando uma das conversas mais importantes e incríveis com seu filho André.

Aconteceu numa 4ª feira, quando ele veio jantar como geralmente fazia. Talvez embalada pelos últimos acontecimentos de sua busca por um certo alguém, ela tentou furar a muralha de gelo que André colocava em torno de sua vida privada. Começou falando:

- Meu filho, eu queria conhecer seu colega, com quem você mora... acho estranho já ter passado quase um ano e meio e eu não o conhecer.

Viu que André se mexeu desconfortável na cadeira ao responder:

- Pô, tudo isso já? É, mãe, a gente pode combinar... é que a vida tá tão corrida, né?

- Ele faz o quê mesmo?

- Ele tá terminando a residência médica em cirurgia ... tem uma rotina louca, mal para em casa por causa dos plantões.

- É Gabriel o nome dele, né?

- É... – e enfiou mais uma garfada na boca para não falar.

- E... vocês se dão bem, é bom dividir a casa com um amigo, filho?

André a olhou intensamente, tentando entender aonde ela queria chegar. Laura estava realmente interessada em saber? Estaria disposta a encarar a verdade? Pela enésima vez, o rapaz teve vontade de se abrir, de conversar, de, finalmente, se revelar. Mas sempre lhe faltou coragem. No entanto, agora, com sua mãe ali, independente, começando uma nova vida, o olhando como se... como se já soubesse de algo! Pareceu encorajador... Pousou o talher no prato, limpou a boca com o guardanapo e respirou fundo.

- Mãe... tem uma coisa que... que eu quero te contar faz muito tempo...

Ela sorriu e segurou a mão do filho.

- Pode contar, meu filho...

- Eu sou gay. – Três simples palavras, que carregavam um peso enorme. E ele as proferiu. E se sentiu imediatamente mais leve. Ela se levantou e o abraçou com força, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Percebeu que o filho também chorava.

- Eu desconfiava, meu amor... sempre quis que você confiasse em mim para me contar... mas sentia que você se fechava... e eu quis respeitar sua privacidade. Até agora... finalmente, meu filho amado, finalmente você confiou em mim. Obrigada. Obrigada por me contar...

Choraram juntos, riram juntos, se acalmaram juntos, brindaram juntos a esse novo momento na vida dos dois. Laura quis saber de tudo. De toda a história desde o começo... E André contou.

Ele sempre se sentiu diferente do irmão. Enquanto Luciano queria brincar de bola, de luta, de carrinho com ele, ele preferia ler ou brincar com a irmã mais nova do que ela estivesse brincando, geralmente de barbie. Mas teve uma vez que o pai o pegou com a boneca na mão e lhe deu uma bronca, dizendo que era coisa de menina. Depois daquilo, ele sentiu medo. Laura abanou a cabeça, lamentando a mente estreita e machista do ex-marido, que causou tamanha reação em seu filho. "Um dia, um dia, ele vai ter que saber o que causou. E se redimir. Amadurecer e pedir perdão ao filho".

André contou que passou a adolescência à sombra do irmão. Como era naturalmente protetor, Luciano o defendia de qualquer bullying, e André era muito grato a ele por isso. Invejava também Maria, por sua liberdade em experimentar. Lembrou-se de uma conversa que teve com ela, sobre as sensações que um beijo despertava. Ele tinha beijado umas duas garotas, e nunca tinha sentido nada daquilo. As garotas eram suas amigas, e ele sentia somente o carinho de amigo. Nunca foi algo mais forte e intenso como ela descrevia...

E se descobriu gay aos 15 anos, quando foi beijado por um colega da escola, numa festa. Foi escondido, e ele ficou dias abalado com a descoberta. Pois tinha sentido tudo o que a irmã tinha descrito. E tudo então fez sentido para ele. Porque ele não se identificava com o mundo masculino. E, passou então, a viver uma mentira. Para os parentes e amigos mais próximos da família, ele era um personagem hetero, que correspondia às expectativas deles. Pra os amigos só dele, ele se sentia mais livre para ser verdadeiro.

- Filho, como você conseguiu viver assim por tantos anos, mais de dez?

- A gente aprende, mãe... Na verdade, na faculdade era mais fácil... ela ficar em Niterói ajudou muito, pois eu saía com a galera de lá, me sentia livre... era ruim quando ficava do lado de cá da ponte... achava que seria pego no flagra por algum conhecido da família. Era bem tenso...

Laura abraçou o filho de novo. Como viver dessa forma? Que sociedade, que cultura maldita era essa que fazia jovens bacanas e inteligentes como seu filho viverem escondidos, como se fossem criminosos? Ela chorou de novo, com raiva do mundo.

- Filho, será que você nunca teve confiança para me contar, quando você tinha seus 15 anos, ou depois?

- Eu pensei nisso mil vezes, mãe, eu sentia que você poderia aceitar... mas o papai... bom, dava pra perceber que a relação de vocês não era as mil maravilhas... e eu tinha medo de te contar e isso virar motivo de briga e até de separação. Eu jamais iria me perdoar por ser a causa disso.

- Claro que não, filho! Isso nunca aconteceria!

- Bom, mas o passado é passado, já foi, né? Agora, eu estou muito feliz por ter te contado.

- Seus irmãos sabem?

Ele ficou pensativo antes de responder:

- Mãe, sinceramente, eu acho que eles já intuem, sim... eu capto algumas insinuações. Mas, como você, eles sempre respeitaram a minha privacidade. Então, agora, com você sabendo, vai ser fácil contar pra eles...

- A gente faz um jantar especial aqui, nós quatro.

- Isso! – ele sorriu e abraçou a mãe. – Obrigado, mãe.

- Ai, filho, eu queria ter participado de tudo isso desde sempre... queria ter te apoiado, ter te segurado a mão, ter te defendido...

- Eu acho que, de alguma forma, você fez isso tudo, mãe... ao sempre manifestar como você pensava sobre o movimento LBGTQIA+, direitos humanos, homofobia, machismo tóxico, racismo estrutural, essas coisas. As conversas que você tinha com a gente sobre sexualidade, sobre respeitar as diferenças... O problema é como o papai reagia debochando às vezes... isso me desencorajava.

- E você pretende contar para o seu pai?

- Não sei... pra quê, né?

- Pra você se sentir livre, meu filho, de poder frequentar nossa família com seu namorado, de poder contar com a gente para apoiar seus planos. Seu pai, assim, vai acabar sabendo, e pode ser pior. Melhor você contar. Mas, dá um voto de confiança, vai que ele agora está diferente também? Ele está fazendo terapia, filho, o que já é uma grande coisa.

- É, mãe, você tem razão... eu fico meio cabreiro porque, quando o Gabriel contou pro pai, o cara reagiu mal...

- E quando foi isso?

- Quando a gente foi morar junto.

- E a mãe dele, como reagiu?

- Ela morreu há alguns anos...

- Puxa vida! Coitado! Bom, filho, cada um com seu cada um. Você não deve pensar que seu pai vai dar defeito também. A gente pode ir todo mundo junto, pra ele ver como todos te apoiamos, isso pode ser bom, o que acha? – André apenas a olhou agradecido e a abraçou, chorando. Laura se sentiu muito feliz como mãe, como mulher, como cidadã: "Sei que o mundo ainda é cruel com pessoas como o meu filho. Mas quero ter saúde para ajudá-lo, para protegê-lo, para mostrar pra esse mesmo mundo que todos podemos conviver, respeitando as diferenças." 

Quase 50tonaOnde histórias criam vida. Descubra agora