Cap 20 - Antes Só Do Que Mal Acompanhada

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Foi difícil se desapegar de Cadu. Ela realmente estava sofrendo. Nem a terapia ou as amigas de fé estavam dando conta de fazê-la seguir em frente, de partir pra outra. Não ficava assim na fossa desde a adolescência.

Na primeira conversa com suas amigas pós-rompimento, ela relatou a discussão. Sílvia tomou suas dores:

- Não, realmente, não dá. Homofóbico, machista tóxico, ou que tem qualquer preconceito, homem com bafo ou cecê azedo, never. O resto, a gente consegue administrar. Até ronco de estremecer quarteirão dá pra suportar.

Cláudia e Adriana contemporizaram. Se lembraram de quando Laura contou a elas sobre André, de como ficaram surpresas e de como levaram um tempo para se costumarem com a novidade:

- Acho que você se precipitou...

- Também acho, amiga...

- Por quê?

- Porque você jogou essa bomba no colo dele e não lhe deu tempo para absorver o impacto. Você achava que o Flávio iria romper com o filho e isso não aconteceu, não é? Acho que você julgou o Cadu muito depressa.

- É por aí, amiga.

- Ah, gente, não me façam me arrepender do que eu fiz... ele parecia muito certo do que pensava. Veio até com a bíblia pra cima de mim!

- É... esse lance da bíblia foi bola fora total.

- Mas as pessoas religiosas seguem os preceitos de seus livros sagrados. E não podem ser condenadas por isso, né...

- Sim, Adriana, não podem. Mas também não podem usar os mesmos preceitos para espalhar o preconceito e o ódio ao que é diferente do que elas acreditam. E esse é o problema da maioria das religiões. Se essas pessoas crentes seguissem cuidando só das suas próprias vidas, fazendo somente o bem que está lá nos seus livros sagrados, o mundo seria um lugar bem melhor.

Ficou matutando sobre o que as amigas disseram. Será que foi precipitada? Realmente, ela reagiu mal ao que Cadu disse. Mas, ele parecia tão convicto de seu pensamento... Não, foi melhor assim... Mas, bem que poderia ter conversado mais mesmo... Quem sabe, com o tempo, ele se tornasse mais tolerante? Afinal, ela mesma foi aprendendo muitas coisas, com o passar dos anos.

Ninguém nascia preconceituoso ou racista. Eram coisas que se aprendiam na sociedade, na família, até mesmo na escola. Ela era de uma época na qual os livros didáticos, por exemplo, não traziam famílias negras nem variadas. A representação familiar era a chamada tradicional: pai, mãe e filhos, todos brancos. Negros, quando apareciam, eram sempre associados à escravidão e à pobreza. Felizmente, a sociedade foi evoluindo, os movimentos pelos direitos das minorias foram conquistando leis e políticas públicas. Foi sua filha que começou a lhe ensinar sobre o feminismo na prática, e ela era ainda uma adolescente. Quando se arrumava para sair, e a mãe achava a roupa muito curta e reclamava, a filha respondia:

- Mãe, eu gosto de me vestir assim, mas isso não é um convite pra ninguém encostar a mão em mim. Se encostar, vai levar um chute no saco.

Mais crescida, as duas conversavam sobre os movimentos pela descriminalização do aborto, pela equiparação salarial entre homens e mulheres, o #metoo e ações semelhantes. Laura se enchia de orgulho, mas o medo também crescia, ao sentir alguns retrocessos no país, principalmente nos últimos anos.

Foi estudando e convivendo com seus alunos que ela percebeu também como ela própria era machista e racista em algumas situações, mesmo que de forma inconsciente. Achar ruim uma roupa decotada em outra mulher era um exemplo singelo... As palavras têm poder também, e ela começou a perceber como o termo "preto", por exemplo, tinha uma conotação negativa: "a coisa tá preta" significava que a situação era ruim; "preto de alma branca" era uma expressão odiosa, que resumia tudo. Ela, como professora, conhecia uma infinidade de exemplos como esses, comuns em nossa língua mater, e foi graças aos movimentos antirracistas que ela pode notar e mudar sua forma de falar e, principalmente, de pensar. E era uma vigilância e um aprendizado diários. Era preciso mesmo estar sempre atento e forte para combater preconceitos de qualquer natureza.

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