"Por que você me deu falsas esperanças? Por que passou sal nas minhas feridas? Foi embora e me deixou sangrando, sangrando"
Tiago
Acordei com a sensação de que um batalhão de tambores ensaiava em minha cabeça. A luz do dia espreitava por entre as cortinas, intensificando a dor de uma ressaca feroz que me fazia jurar, mais uma vez, nunca mais beber. Tentei me erguer, mas meu estômago revirou-se em protesto. Com um gemido, desisti e relaxei de volta no travesseiro, cobrindo o rosto com as mãos, numa tentativa inútil de bloquear a claridade.Pressentimentos incômodos agitavam-se em minha mente nebulosa, mas qualquer tentativa de pensar se dissolvia na cacofonia interna. Foi quando um brilho intermitente chamou minha atenção. O celular piscava com uma urgência que não pude ignorar. Kate. Seu nome, repetido vezes sem fim, tornava-se um mantra na tela bloqueada ao lado de uma série de chamadas perdidas.
Sentei-me, sobressaltado, um fio de ansiedade serpenteando pela névoa alcoólica. Por que Kate me procuraria tantas vezes, se é conhecida pela sua paciência quase infinita? Disquei seu número com dedos trêmulos, esperando que me atendesse com sua voz calma que sempre conseguia dissipar minhas tempestades internas. Mas só o que encontrei foi o frio toque da caixa postal.
Naquele instante, algo me dirigiu à TV. O controle remoto pareceu saltar para a minha mão e no segundo seguinte, o mundo parou. "Notícia de Última Hora" dançava na tela enquanto a imagem de chamas devorando estruturas familiares cruéis e impiedosas me golpeava os sentidos.
Era o ateliê de Kate. O lugar onde ela derramava alma e paixão em cada pincelada, onde criava cores e formas que eram mais do que arte, eram pedaços de nós. O fogo consumia tudo com uma fúria voraz, e eu, paralisado, só conseguia imaginar o pior.
O telefone escorregou de minha mão, batendo com um estalo surdo no tapete. O peso da realidade pressionou meu peito com a força de uma tonelada de tijolos. Kate, a mulher que com seu sorriso poderia iluminar o mais escuro dos quartos, agora estava envolta numa incerteza aterradora.
Não me recordo de vestir-me ou de trancar a porta ao sair. Lembro-me apenas de correr pelas ruas como se pudesse desafiar o tempo e a distância, impulsionado pela necessidade de encontrar Kate, de garantir que ela estivesse segura, de ver seus olhos me garantindo que este pesadelo era só isso - um pesadelo.
O ar cheirava a cinzas e desespero quando me aproximei do que restou do ateliê. O esforço descomunal dos bombeiros formava um contra-ataque heróico contra o monstro de fogo, mas eu sabia que o que realmente importava pra mim não podia ser salvo pelas mangueiras de água e espuma.
Kate, onde você está? A pergunta ecoava não apenas em minha mente, mas no pulsar cada vez mais acelerado de meu coração assustado.
Com o peito arfante e a respiração pesada turvando o ar frio, circulei o perímetro de segurança onde os bombeiros e policiais se movimentavam freneticamente. A multidão de curiosos e vizinhos angustiados formava uma barreira viva que eu tentava, a todo custo, penetrar com o olhar, buscando o rosto amado.
Minha voz se perdia na cacofonia de sons caóticos - o crepitar das chamas, as ordens gritadas, a água batendo contra o que sobrevivia do inferno - mas eu a gritava de novo, uma e outra vez, uma súplica na imensidão do tumulto.
Foi então que senti uma mão em meu ombro. Virei-me abruptamente, esperança e medo brilhando nos olhos. O policial diante de mim tinha um semblante grave, e meu coração teve um sobressalto.
— Você está procurando por alguém? — A voz do policial era quase um sussurro sobre o rugir do desastre.
— Kate. Kate Carter. Ela é a artista... era o ateliê dela ali.