Zahara
Ainda lembro como o meu sapato afundou na grama fofa, úmida e estrategicamente cortada aquele dia. Era tão verde e bonita que se eu olhasse só para os meus pés poderia pensar que estava em um jardim.
Naquele dia eu acordei mesmo sem ter dormido e o silêncio da minha casa me incomodou. Ignorei Van Gogh e atravessei o quarto devagar, prestando atenção no barulho da chuva que batia na janela, forte e um pouco fantasmagórica. Tomei banho, me sequei e fui para o closet ainda em silêncio. Separei todos os vestidos pretos que eu tinha e os coloquei no chão. Nailha apareceu no meu quarto já completamente pronta, os olhos inchados e vermelhos de sono. Foi a primeira noite de muitas que ela não dormiria.
Ela se sentou em um banco com Van Gogh no colo. Olhei para o seu vestido preto e para os seus sapatos igualmente escuros e ela olhou para todas aquelas opções de roupa que eu deixei no chão.
— Por que temos que usar preto? — ela perguntou.
Não sabia responder. Sabia que era um costume antigo para expressar luto, mas não entendia por que tinha que ser preto e não outra cor.
— Porque eles acham que essa é a cor da tristeza.
— Papai gosta de azul.
Ela me olhou esperançosa enquanto arruinava o seu vestido com os pelos que Van Gogh estava soltando.
Rondei o closet e fui mostrando para ela todas as opções de vestidos azuis que eu tinha. Ela escolheu um de mangas curtas e pregas. Azul marinho. Fomos para os sapatos e ela pegou uma sapatilha também azul. Os brincos foram os de pérola porque Nailha disse que eles ficavam bonitos em mim. Meu cabelo, sem as pontas vermelhas na época, foi preso com uma tiara.
Depois de arrumadas fomos para o quarto dela com Van Gogh miando atrás de nós. Fizemos o mesmo ritual pelo closet cheio de vestidos exclusivos da minha irmãzinha. Vestido azul, sapatos azul, brincos dourados e trança no cabelo. Ela se trocou e descemos para esperar Melissa na sala.
Ela apareceu toda de preto e com óculos escuros escondendo os seus olhos fragilizados. Pela primeira vez minha mãe não se importou com a nossa roupa. Naquele momento nada fazia sentido de qualquer forma. Fomos as três no mesmo carro, com André, o motorista, dirigindo. O caminho foi silencioso até Nailha, sentada no meio do banco traseiro do Audi, falar:
— Mas eu não entendo, por que o papai teve que morrer?
Não entendia também e até agora não entendo. Que tipo de roleta-russa é essa que escolhe pessoas aleatoriamente para terem uma doença tão horrível? Não é justo, não foi justo e eu nunca iria aceitar.
Em uma sessão Sandra me perguntou se eu me lembrava do exato momento em que a ideia de morrer veio à minha cabeça. A ideia de terminar a angústia e o sofrimento, de deixar de tentar e só dormir. Foi ali, enquanto meus sapatos afundavam na grama que parecia de um jardim. Eu me lembro de decidir exatamente ali, no meio de um cemitério, mas não me recordo de como foi por a ideia em prática. Não me lembro de pegar os comprimidos e tomá-los ou de deitar na cama e esperar a escuridão me sufocar. Apaguei da minha mente porque eu estava procurando alívio e terminei encontrando apenas dor e medo. Tudo o que eu causei foi preocupação de quem eu menos queria. Nailha, Otávio, até Melissa, e agora Isaque.
O olhar dele em mim sempre foi uma das melhores coisas de tantas que ele me ofereceu. Isaque nunca me olhou como as outras pessoas. Elas olham para Zara e a veem como algo a ser analisado, estudado ou apenas assistido. Ele me olhou desde o primeiro dia como uma pessoa, como uma garota. Mas agora ele está com o olhar que todos têm para mim, Zahara. O de pena.
Ele quer fazer mil perguntas e todas estão escritas no rosto dele. "Por que", "quando", e "por que" novamente. Mas ele não vai fazer nenhuma delas porque, por mais que ele queira saber, ele está com medo. E Isaque é um garoto sensível o bastante para achar que perguntar tais coisas seria invadir um espaço que ele não foi convidado a entrar.
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Brilho e Espuma
RomanceTudo na vida de Isaque parece ser normal. A faculdade, os amigos e até a sua obsessão pela natação são coisas com que ele está acostumado e consegue lidar. Mas ninguém é perfeito, todo mundo tem pelo menos uma partícula de loucura e talvez tenha sid...