gotta let it happen

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Eu estava tentando voltar à rotina, ainda que aos poucos, tentando me concentrar no trabalho. O e-mail de um cliente ocupava a minha tela, mas minha mente vagava entre palavras que não faziam mais sentido. Responder e-mails era algo simples, quase automático, mas naquele momento, cada palavra parecia um esforço. Minha cabeça estava tão distante que o som repentino do interfone me fez saltar na cadeira. Olhei pela janela; o céu já estava tingido de um roxo profundo, a noite acabava de cair. Quem poderia ser a essa hora?

Levantei-me devagar, como se cada movimento exigisse mais do que eu podia dar. "Oi, Seu João," cumprimentei ao atender, tentando esconder o desconforto na minha voz.

"Boa noite, Verônica. Tem um rapaz aqui perguntando se a senhora está em casa."

Franzi a testa. Não estava esperando ninguém. "Ele disse o nome dele, Seu João?"

"Disse sim. O nome dele é Lucas."

Meu coração parou por um instante, como se alguém tivesse apertado o pause. "Lucas?" repeti, minha voz soando mais fraca do que eu gostaria. A última pessoa que eu esperava ver, a última pessoa que eu sabia que não deveria ver. "Ele disse o que queria?"

"Não... Ele só pediu pra que você descesse."

Hesitei. O silêncio que se seguiu do outro lado da linha parecia pesar toneladas. Meu peito estava apertado, uma guerra interna acontecendo entre o desejo de vê-lo e a necessidade de me proteger. "Verônica? Ainda está aí?" a voz do Seu João me trouxe de volta à realidade.

"Estou, Seu João. Eu... já estou descendo," respondi antes que pudesse mudar de ideia.

"Tá bom, vou avisar ele," ele disse, e o clique do interfone ecoou pela sala, deixando-me sozinha no silêncio pesado do meu apartamento.

Fiquei parada por alguns segundos, tentando assimilar o que tinha acabado de ouvir. Lucas estava lá fora, esperando por mim, e meu corpo parecia dividido entre o impulso de ir e o desejo de ficar onde estava, segura. Mas, no final, a curiosidade, ou talvez a necessidade de encarar o inevitável, venceu. Calcei os chinelos de qualquer jeito e, quase sem pensar, fui até a porta e saí.

O trajeto até o elevador foi um caos em minha mente. Milhares de pensamentos corriam, se atropelando e se contradizendo. O que ele queria? Por que agora? As lembranças dos últimos meses e todas as emoções que tentei enterrar começaram a borbulhar, ameaçando transbordar. O elevador parecia apertado demais, cada segundo de descida era uma eternidade, e meu coração batia tão forte que parecia ecoar nas paredes de metal.

Quando as portas finalmente se abriram, me senti um pouco mais estável, embora ainda assombrada pela incerteza. Caminhei direto até Seu João, que estava em seu posto habitual.

"Seu João, onde ele está?" perguntei, tentando manter minha voz firme, apesar do tremor que sentia por dentro.

Ele olhou para mim com um misto de compreensão e preocupação, como se pudesse ver a turbulência por trás do meu olhar. "Ele falou que ia esperar no carro", disse, apontando para uma BMW preta estacionada bem na frente da entrada.

Franzi a testa, surpresa. "Uma BMW?", pensei comigo mesma. Lucas não era o tipo que ostentava, e o carro parecia deslocado naquela situação, como se ele estivesse tentando fazer uma declaração que eu não conseguia decifrar. Sentindo meu estômago se revirar de nervosismo, caminhei em direção ao carro, hesitante, como se cada passo me levasse para um destino incerto.

Quando me aproximei, vi o vidro da janela do motorista abaixar lentamente. Lucas estava lá, olhando para mim com um olhar que parecia carregado de uma mistura de ansiedade e algo que eu não conseguia definir. Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, meus olhos foram atraídos por algo inesperado: no banco do passageiro, havia uma pequena caixa de papelão, e dentro dela, um filhote de gato preto, minúsculo e adorável, que me olhava com aqueles grandes olhos verdes, como se estivesse pedindo ajuda.

Tão Perto | Lucas InutilismoOnde histórias criam vida. Descubra agora