— MARCELA! — ANDREA GRITOU, mais tarde naquele dia. A garota estava com as mãos enfiadas em uma pia cheia de detergente, sem luvas, lavando as louças do jantar. A playlist escolhida – uma seleção de músicas em que os intérpretes soavam furiosos – tocava em volume baixo no celular em vez de nos fones, porque Marcela já sabia que a madrasta daria um jeito de berrar alguma ordem, ainda que soubesse que ela já estava ocupada.
— Já vou! — Marcela cantarolou, e Andrea devolveu:
— Agora!
Ela conhecia aquele tom ameaçador bem demais para ignorá-lo.
Secou as mãos no avental que estava usando desde a visita de Jonas mais cedo e desligou a música, enfiando o celular no bolso da calça e caminhando até a biblioteca, onde a madrasta estava sentada à escrivaninha que tinha pertencido a seu pai. Um laptop de última geração diante dela tinha toda a sua atenção, e Marcela limpou a garganta para anunciar que já tinha chegado.
Andrea ergueu os olhos e cruzou as mãos na frente do rosto, as longas unhas vermelhas fazendo com que Marcela pensasse em vilãs de novela. Com as mãos atrás do corpo, a garota não disse nada enquanto a madrasta a avaliava.
— Seu rosto está sujo.
Instintivamente, Marcela tocou a bochecha esquerda, sentindo a textura do que só podia ser o doce de abóbora. Ela se virou de costas e limpou o rosto no avental, em pânico. Jonas tinha comido o doce quase inteiro e levado um pouco para comer quando chegasse em casa. Não tinha sobrado nada.
Não que a madrasta fosse se dignar a ingerir açúcar refinado, longe disso. Mas perguntas seriam feitas, e Marcela não era uma boa mentirosa.
— Eu estava limpando a biblioteca mais cedo. Devo ter esfregado a mão no rosto sem perceber. — Ela tentou, com uma meia-verdade. Tinha estado na biblioteca, mas para procurar o livro de receitas da avó.
Andrea percorreu com os olhos as superfícies a sua volta, para se certificar de que o trabalho estava bem-feito. Para a sorte de Marcela, a biblioteca estava bem limpa. Nem mesmo o olhar atento da madrasta seria capaz de notar a diferença entre a limpeza feita no próprio dia ou no dia anterior. De todas as suas tarefas domésticas, limpar a biblioteca era algo que Marcela não reclamava de ter que fazer. Afinal, era o cômodo da casa em que sentia a memória de seu pai mais presente.
— Abra a janela. Esse lugar está meio claustrofóbico — ordenou, e Marcela obedeceu, mostrando a língua para a janela quando estava de costas para Andrea.
Se sentiu inclinada a dizer à madrasta para dar o fora da biblioteca de seu pai se tinha tantos problemas com ela, mas se conteve. Caso sugerisse isso, Andrea diria que estava passando da hora de transformar todo aquele espaço em uma academia interna, que seria muito mais proveitosa do que um monte de livros.
A ideia causava arrepios em Marcela.
Não só porque, a despeito das obras de arte e mobília de designer que a madrasta tinha adquirido ao longo do casamento com seu pai, e depois de seu falecimento, a garota achava que os livros eram os itens mais valiosos de toda a propriedade.
Mas também porque aqueles livros em específico eram diferentes. Muitos deles, meus pais tinham adquirido em viagens, lido e marcado com suas próprias anotações. Livros de filosofia, sua grande paixão, completamente rabiscados e com as páginas vincadas em suas passagens favoritas.
Havia livros de faculdade de sua mãe, que era uma professora de história, com pequenos pedaços de papel contendo ideias para questões de provas, fatos curiosos que os alunos poderiam achar interessantes... Marcela ouviu dizer que a mãe era muito dedicada ao seu ofício.
Sem se dar conta de que a garota estava perdida em pensamentos sobre seus falecidos pais, Andrea prosseguiu.
— Você se lembra do contrato importante que eu estava para fechar?
Como eu poderia esquecer. Você não fala em outra coisa.
A garota fez que sim com a cabeça.
— O assinamos ontem, eu e o meu sócio.
— Parabéns, madrasta — falou Marcela, surpresa por não ter sido condescendente. — Sei que estava se empenhando muito nisso.
Não deixava de ser verdade. A mulher era obcecada pela própria carreira, quase tanto quanto era sobre sua aparência.
O problema é que Marcela sabia que toda vez que Andrea e Lúcio fechavam contratos grandes, isso significava que a garota teria que trabalhar no evento em questão. Geralmente na recepção, conferindo a lista de convidados. Ou na chapelaria, o que ela preferia, pois geralmente gorjetas estavam envolvidas.
A única certeza que tinha é que não receberia um tostão de Andrea pelo serviço.
Mas, de alguma maneira, seu tom era brando o suficiente para que a madrasta ficasse sem graça. Ela abriu a boca para talvez agradecer, mas a fechou rapidamente. É claro, Marcela pensou, com amargura. Andrea não sabe usar a palavra "obrigada".
— O cliente em questão é sofisticado. Mas um pouco extravagante. Certamente não tem muita tolerância para imperfeições. Estive tentando fechar contrato com ele há anos. Também é um membro ativo da alta sociedade, e costuma dar muitas festas. É uma porta de entrada para novos trabalhos, que precisamos desesperadamente.
Precisamos. O uso do plural era irônico, porque sugeria que Marcela tinha alguma coisa a ver com os problemas profissionais da madrasta. Não era o caso, mas a garota não tinha a opção de recusar o trabalho.
Marcela sequer tentaria dizer à madrasta que tinha provas, ou que a lista de tarefas domésticas e exigências culinárias que recebia todos os dias para cumprir estava ficando cada vez mais longa, e não teria tempo. A resposta seria a mesma: Andrea diria que a estava sustentando até que a garota completasse dezoito anos e pudesse acessar a herança de seus pais, e que, como se valia da própria renda para todas as despesas da garota exceto a mensalidade da escola, o mínimo que Marcela podia fazer era ajudá-la nos negócios quando era requerida.
A garota admirou as unhas de gel recém manicuradas da madrasta. As luzes douradas em seus cabelos. Os muitos anéis e braceletes cravejados de pedras preciosas e o terninho de grife. Do jeito que Andrea falava, parecia que estava à beira da falência. Mas, do jeito que ela se apresentava, Marcela que a mulher só a enxergava como um funcionário a menos para pagar.
— Precisarei da sua ajuda na recepção. O evento é extremamente seletivo, e precisamos nos certificar de que não haverá penetras.
Mais dois anos, apenas, Marcela lembrou a si mesma. Dois anos, e estaria livre. Seria maior de idade. Poderia acessar a herança do pai e dar o fora daquela casa, ainda que isso lhe doesse um pouco. Faria faculdade. Teria uma carreira, se sustentaria sozinha e, enquanto não pudesse fazer isso, o dinheiro de seu pai a garantiria pelo menos uns bons quatro anos.
— Sim, madrasta — fez ela, tentando pensar nas terras prometidas do futuro. Um em que ela não precisaria trabalhar de graça em eventos de ricaços que a tratavam como se fosse uma serviçal.
— É no próximo dia vinte e um. Não faça planos — a nota aguda de deboche fez com que uma raiva genuína atormentasse a paz dos pensamentos da garota. Sua solidão não tinha passado despercebida à madrasta, mas, é claro, ela jamais faria perguntas à garota sobre o motivo de não ter amigos. Não teria estômago para ouvir a resposta.
Só então Marcela se tocou.
— No dia... vinte e um?
— Sim. À noite. Algum problema?
— Não — ela se apressou em dizer, torcendo para que Andrea não percebesse que o sangue tinha se esvaído de seu rosto. Então, reuniu coragem para perguntar: — Quem é o cliente?
— Aldo e Marta Levi.
𖥔‧₊˚ ⊹˖ ࣪ ⊹*:・゚✮
n/a: vocês precisam me dizer que por essa vocês esperavam...
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Cinderela às avessas
Teen FictionPalácios, vestidos brilhantes e sapatinhos de cristal não fazem parte da realidade de Marcela Leone. Órfã de mãe desde bebê e de pai pela metade de sua vida, a garota foi obrigada a convencer seu coração sonhador de que não há fadas madrinhas ou prí...