6 | a gata borralheira

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ENCANTADO: COMO ESTÁ sendo seu dia até agora?

A mensagem apareceu na tela do celular sobre a mesa da biblioteca, roubando a atenção de Marcela do dever de casa de matemática que concluía às pressas. As tarefas domésticas no dia anterior tinham tomado muito tempo, e a cansado também. Quando a noite caiu, a garota tomou a decisão executiva de deixar a lição de casa para o dia seguinte – para que pudesse passar o tempo na internet esperando por seu príncipe.

Ella: Difícil. Estou lutando para manter os olhos abertos. Fiquei jogando até tarde, e tive que acordar cedo para fazer o café e lavar toda a louça. Isso fora o berreiro mais cedo. E o seu?

Encantado: Mais do mesmo. Acabei de jogar uma partida com os moleques no intervalo, para revanche de ontem.

Ella: Que hormonal.

Encantado: Garotos serão garotos.

Ela soltou uma risada para o celular, pensando em como ela e o garoto com quem conversava diariamente tinham vidas completamente diferentes. À exceção do jogo de faz de conta, que foi como se conheceram, não tinham nada em comum.

Ele era um garoto popular, que estava no time de basquete de sua escola e efetivamente tinha amigos. Talvez até uma namorada? Ela não saberia, e preferia não saber de nada que pudesse interromper as conversas que eram a melhor parte de seu dia. Sempre que o garoto falava de sua família, era com muito carinho – à exceção do pai, que lhe aplicava uma pequena pressão quanto à escola e ao esporte. Quem me dera eu ainda tivesse meu pai comigo, para me pressionar a respeito de alguma coisa.

Marcela, por sua vez, não tinha amigos. Era ignorada pela família – se é que podia chamar a madrasta e as filhas assim –, a menos que fosse para pedir que levasse o lixo para fora ou que varresse o chão.

E ninguém poderia estar mais longe de ser considerada popular do que Marcela Leone.

Ela já tinha acordado consigo mesma que Theo jamais poderia saber quem era de verdade. No que dependesse de Marcela, nem seu nome verdadeiro ele saberia, mesmo que seu príncipe já lhe tivesse segredado o dele.

Theodoro.

Aquele nome devia estar escrito centenas de vezes dentro de corações naquele mesmo caderno de onde a garota passava a limpo as respostas do dever de casa. É o que acontecia, vez ou outra, quando ela se esquecia de quem era e se permitia sonhar um pouco. Devanear sobre um cenário improvável, pertencente a um futuro incerto, onde se encontrariam e ela diria isso a ele. Eu costumava escrever seu nome por todo o meu caderno, e agora estamos aqui.

Ele era seu melhor amigo. Seu único amigo. Marcela até interagia com outras pessoas por meio do jogo, mas só Theo falava com ela durante o dia – um testemunho de que o que tinham era especial e borrava um pouco as linhas do imaginário e do real.

Mas não tinha importância. Além da baixa probabilidade estatística de que o encontrasse no Mundo Real, a garota realmente acreditava que os dois estavam melhor nessa interseção virtual criada para que pudessem coexistir, a despeito das diferenças gritantes entre um adolescente e outro.

Encantado: Nos falamos mais tarde? Não tenho treino hoje.

Marcela estava na metade da digitação de uma mensagem para explicar que, quando chegasse em casa, deveria varrer todas as superfícies, trocar as roupas de cama e colocar para lavar os lençóis, além de limpar a cozinha e fazer o jantar. Isso sem falar nas lições de casa que tinha acumulado só no primeiro período de aula.

Por suas contas, ela devia terminar tudo só lá para as dez da noite.

O certo seria dizer "hoje, não posso". Mas ela não conseguiria nem se tentasse. Dizer a Encantado que estava muito ocupada para que passassem algumas horas no jogo significaria renunciar à única parte do seu dia pela qual ansiava.

Por aventureiro que fosse sentir todas aquelas coisas por uma pessoa sem voz, sem rosto e todos os outros aspectos que geram a atração entre pessoas, seus sentimentos eram impossíveis de se ignorar.

Marcela sentia o rosto corando, seu coração batendo forte, e mesmo que já estivesse morrendo de sono e preocupada em como sobreviveria à escola dentro de poucos minutos (e, bem, como sobreviveria à madrasta se ela descobrisse suas violações ao toque de recolher), a garota se sentia mais viva do que nunca só diante da perspectiva de poder passar algum tempo com ele. Em uma sexta-feira!

Ela se sentia mais viva em uma realidade inexistente do que quando estava no Mundo Real, rodeada de pessoas.

O que sentia por Theo era real, mesmo que o relacionamento não fosse.

Ella: Pode ser. Não muito tarde, ok? Estou cansada hoje.

Encantado: Noite e dia, Cinderela.

Ella: Exato.

Encantado: Podemos nos falar só nos dois. Sem entrar no chat.

Ella: Soa como um encontro.

Encantado: Eu ia te pedir para me ajudar com a minha lição de história, mas agora que você usou a palavra encontro, me parece errado.

Ella: Se aproveitando de mim, meu príncipe?

Encantado: Gosto de falar com você. Não me entenda mal. O fato de você ser uma absoluta nerd em ciências humanas é só um bônus do qual pretendo tirar vantagem mais tarde.

Ela sorriu para o celular.

Ella: Combinado.

Marcela sabia que sua história era pouco convencional. Um conto sem fadas. A história de uma Cinderela às avessas. Ela era uma princesa que não queria ser resgata de sua torre solitária e teria receio de ser encontrada por seu príncipe.

Era a garota racional. Não se atrevia a sonhar. Seu conhecimento histórico a comprovara que, no Mundo Real, príncipes (encantados ou não) não se casam com serviçais e são felizes para sempre. Não sem nenhum grande incidente diplomático por conta disso – ou o fim do mundo, considerando que a história original da Cinderela se passa na Europa, e o povo europeu é chegado em fazer uma revolução.

Que príncipe não praticamente nasceu prometido a outra mulher nobre, sem ser aquele príncipe que se casou com uma atriz de televisão, ou aquele outro que se casou com a colega de faculdade? Se raios caem duas vezes no mesmo lugar, esse acontecimento raro já pertencia a Meghan e Kate. E Marcela tinha certeza de que nenhuma das duas passava a sexta-feira limpando os ladrilhos do banheiro com uma escova de dentes velha.

Theo, quem quer que fosse, era uma ilusão.

E sua realidade era bem diferente daquela fantasia. Sem família e sem amigos e, se desagradasse minimamente a madrasta, sem futuro.

𖥔‧₊˚ ⊹˖ ࣪ ⊹*:・゚✮

n/a: eu sei, eu sei. um capítulo curtinho, só para ambientar um pouco mais a nossa história. ainda está cedo para as teorias de vocês?
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Cinderela às avessasOnde histórias criam vida. Descubra agora