NÃO HAVIA SENTIDO em voltar para a aula depois de passar quase trinta minutos "no banheiro", Marcela concluiu. Chamaria muita atenção, na remota hipótese de que alguém tivesse reparado sua ausência. Podia até receber uma reprimenda da professora e, como Jonas Levi havia constatado no dia anterior, seu anonimato era a sua maior vantagem.
Ainda que Theo soubesse que Ella, na verdade, era Marcela, seus amigos não faziam ideia e seria mais fácil descobrir seus segredos se os garotos populares não soubessem que alguém estava procurando.
Isso se eles soubessem que um de seus membros tinha um relacionamento virtual. Jonas, por si só, pareceu bem surpreso ao ouvir a história de Marcela. E, por sua reação genuína, a garota queria acreditar que se ele soubesse de algo dessa natureza, a teria contado.
O celular vibrou do bolso da calça jeans da garota, indicando a chegada de uma mensagem de texto.
Marcela nem precisava olhar para saber do que se tratava.
Encantado: Eu não posso te dizer quem eu sou. Por favor, entenda.
A garota sentiu o corpo tremer um pouco, demorando a perceber que estava apertando tanto o aparelho nas mãos que corria o risco de quebrá-lo ao meio.
Seu dia mal tinha começado, e Marcela já estava exausta de todas aquelas repercussões emocionais. Medo, raiva, vergonha e decepção se alternavam no primeiro plano de sua mente, junto à memória tátil dos dedos de Jonas Levi resgatando suas lágrimas.
Sua capacidade para sentimentos estava sento testada, e ela estava falhando.
Decidiu que precisava de um café. Não porque não havia consumido cafeína o suficiente no dia, mas para ter algo para fazer com as mãos. Seu pai sempre passava um cafezinho quando precisava pensar ou só dar um tempo. Marcela se lembrava de sua figura recostada no batente da porta da cozinha, que dava para o quintal dos fundos. Sobrancelhas franzidas, a fumaça do café espiralando diante de seu rosto.
Por preocupado que seu pai parecesse, sua expressão sempre se atenuava após o primeiro gole.
É claro que a garota não tinha dinheiro consigo, então, ir até a cantina não era uma opção. Mas era melhor assim, pensou. Podia sentir uma ansiedade se formando com a perspectiva de estar no meio dos alunos, no pátio apinhado na hora do intervalo, sabendo bem que estava possivelmente na presença de Theo sem saber quem ele era.
Decidiu que pegaria um café na sala dos professores. Não seria a primeira vez que o faria. A maioria dos professores realmente gostava de Marcela, e, cientes de que a garota não aparentava ser das mais abastadas estudantes, fazia vista grossa quando ela aparecia por lá para filar uns biscoitos de água e sal, e tomar um café em cápsula.
— Marcela! — José Carlos, o professor de história, a cumprimentou no instante em que ela adentrou o cômodo com iluminação amarelada, sofás de couro marrom escuro e escaninhos que cobriam quase todas as paredes.
José já devia ter seus sessenta anos. Tinha um rosto gentil, pouca altura e se vestia quase sempre com uma camisa de botões e manga curta, e calças de alfaiataria. Era, com larga vantagem, o professor favorito de Marcela. Por essa razão, exclusivamente, a garota sorriu para o homem.
Ela olhou em volta, nervosa. Por estarem no começo do intervalo, estavam apenas os dois e a professora Rita, de matemática, na sala dos professores.
— Oi, professor — falou, meio envergonhada. Não é porque Marcela tinha liberdade para tomar o café dos professores sem que ninguém achasse ruim, que ela própria não se sentisse pouco orgulhosa de não ter nem algumas moedas para pagar um lanche.
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Cinderela às avessas
Genç KurguPalácios, vestidos brilhantes e sapatinhos de cristal não fazem parte da realidade de Marcela Leone. Órfã de mãe desde bebê e de pai pela metade de sua vida, a garota foi obrigada a convencer seu coração sonhador de que não há fadas madrinhas ou prí...