2 | bom dia, bela adormecida

227 28 26
                                    

— VOCÊ ACHA QUE eu estou pagando essa escola caríssima para você ficar na gandaia, Maria Antônia? — Andrea bradou, sem qualquer piedade dos ouvidos de Marcela. Ou dos de Antônia.

Uma gritaria eclodiu em resposta, com as gêmeas vociferando suas defesas ao mesmo tempo. Marcela já suspeitava que Andrea descobriria que as filhas tinham violado o toque de recolher. Para a sorte de seus vizinhos, que não mereciam um escândalo em plena meia-noite de segunda-feira, não foi precisamente na hora que elas chegaram.

As gêmeas tinham tomado o cuidado de caminhar pelo soalho a passos leves, com os sapatos de salto nas mãos para não fazerem barulho enquanto percorriam o segundo andar. Marcela só as tinha escutado porque estava acordada, no computador, teclando cautelosamente para não ser descoberta.

Mas era inevitável. A madrasta saberia só de olhar para Antônia e Alice que elas tinham saído; as irmãs costumavam chegar tão bêbadas de festas que caíam na cama com as mesmas roupas que usaram para sair. Por vezes, sequer tiravam os sapatos.

Ou, caso fosse Alice a encarregada dos planos para escapar da surdina, o erro seria pedir um carro por aplicativo no cartão de crédito de sua mãe, em vez de pagar no dinheiro. Ela não era exatamente a mais esperta das duas.

Pelo menos Marcela tinha neurônios o bastante para não deixar o visualizador de mensagens do celular disponível. Assim, a madrasta não veria até que horas da madruga ela ficou papeando na internet com completos estranhos, igualmente violando o toque de recolher, mas de maneira menos detectável.

O alvoroço prosseguiu. Marcela cobriu os ouvidos com as mãos, tentando abafar o caos. Não era justo que ela, que tinha cuidado meticulosamente para que Andrea não descobrisse que eu tinha ficado na jogatina até altas horas (palavras que a madrasta costumava usar para descrever seus hábitos noturnos), tivesse que suportar o escândalo do mesmo jeito.

A madrasta era uma grande praticante da linguagem profana. Eram muitos palavrões por minuto, e a cafeína nem tinha batido direito para Marcela – razão pela qual uma pontada de dor de cabeça começava a lhe incomodar. Obrigada por isso, gêmeas.

Alice decidiu se defender, competindo com a mãe em potência vocal. A discussão duraria uma boa meia hora, então Marcela, que já tinha batido uma omelete no mais absoluto cuidado para não fazer barulho e estava de pé desde as cinco, resolveu entrar no chuveiro para ver se o ruído do aquecedor de água faria com que a balbúrdia fosse abafada.

— Você acha que seu pai aprovaria esse seu comportamento? Me responda, Maria Alice! — Andrea apelou, como de costume, usando nosso luto pela morte de Marcelo Leone como gatilho de culpa.

Geralmente, funcionava.

Ela se referia ao pai de Marcela, porque as gêmeas nunca chegaram a conhecer seu genitor. Além de ser a única referência que elas tinham de figura paterna, seu pai sempre fez questão de tratá-las em pé de igualdade com a própria filha, para que as garotas não crescessem com nenhum tipo de trauma de rejeição.

E Marcela tinha muitas opiniões sobre Antônia e Alice, mas não poderia dizer que as gêmeas não amavam o pai.

Não podia ser diferente. Era o tipo de homem que Marcelo fora. Absolutamente adorável.

Apesar disso, Marcela não sentia a menor inclinação de interferir na discussão para esclarecer que, na verdade, se o pai estivesse vivo, desejaria que Antônia e Alice se divertissem e aproveitassem o segundo ano do ensino médio. Antes que as coisas ficassem sérias demais, e a primeira responsabilidade de um adolescente – passar no vestibular – viesse com uma pressão infinita acabar com a farra.

E ele entenderia que não faria sentido aprisioná-las e lhes roubar a juventude. Orientaria as duas sobre perigos e desvantagens de se viver de festas, bebida e garotos, mas não lhes roubaria a escolha impondo regras excessivas e punindo-as com gritos quando as descumprissem.

O pai sempre dizia a Marcela que o colégio fora um dos períodos mais felizes de sua vida, porque foi quando ele conheceu sua mãe. Contava que as coisas eram diferentes no seu tempo. Não havia festas daquele calibre, certamente não acessíveis a garotas de dezesseis anos. O namoro era na pracinha, com toque de recolher, mas ele sempre conseguia uns cinco minutos de tolerância com a vovó.

A senhora – também falecida – era uma romântica, assim como a própria Marcela.

A garota sentiu uma pontada intensa no peito com essas lembranças. Se questionou, naquele momento, como seriam seus dezesseis anos se o pai ainda estivesse vivo. Como seria a madrasta, se o luto não a tivesse transformado em uma mulher amarga, que tortura as filhas e a enteada por ser viciada em conflito.

Ela saiu do banho, caminhando silenciosamente até o sótão para se vestir. Quando chegou ao espaço miúdo que chamava de seu quarto, imediatamente cobriu os ouvidos com seus fones carinhosamente apelidados de pré-históricos, e colocou para tocar a playlist que criara para sua personagem no jogo. Ironicamente, cinderella's dead, uma canção de EMELINE, começou a tocar no modo aleatório.

Ainda ouvindo os berros, colocou o som no volume máximo.

A medida extrema surtiu o efeito desejado, porque com a música provavelmente causando danos permanentes à sua audição, Marcela não conseguia escutar nem Andrea, nem as gêmeas, nem seus próprios pensamentos.

Ela quase tomou um susto quando a notificação de mensagem recebida interrompeu a música, estralando um "plim" que a vez pular meio metro em seu próprio eixo.

Encantado: Bom dia, Bela Adormecida.

𖥔‧₊˚ ⊹˖ ࣪ ⊹*:・゚✮

n/a: hey babes! logo de cara, já estou apresentando o príncipe (encantado?) no maior estilo a nova cinderela. quando eu digo que eu era obcecada por esse filme na minha adolescência, eu estou sendo modesta.

sempre quis escrever algo assim, e como 2024 é o ano que eu decidi que tudo bem não escrever histórias inovadoras & revolucionários, por que não uma releitura clichê? vocês certamente gostaram do nosso outro clichezinho adolescente...

ah, e feliz bienal aos que celebram! eu estarei no evento aqui em SP esse ano, nos dois fins de semana: 7, 8, 14 & 15 de setembro. vejo alguém por lá?

podem ficar tranquilas que, a despeito disso, nossos posts aqui estão todos programados, não vamos perder nenhum dia. e, caso você não possa estar lá, as redes sociais abaixo vão ter todos os detalhes 😉

com amor, B

instagram: boasmeninas
tiktok: boasmeninas

Cinderela às avessasOnde histórias criam vida. Descubra agora