O homem dos bilhetes

52 6 2
                                    

Após ter recuperado o fôlego, me levanto, pego minha mochila, guardo os papeis e sigo pela estrada até a estação de trem, coloco o capuz para evitar qualquer contato com alguém, se bem que com a minha aparência e esse cheiro de lixo azedo impregnado em mim, duvido muito que alguém queira levar alguma prosa comigo.

Ao chegar na estação, passo em meio a todos e observo toda aquela arruaça, aquele formigueiro borbulhando de gente apresada e ocupada, pessoas que trabalham pra viver cansadas e para que talvez um dia se aposentem e possam desfrutar um pouco da vida que lhes restam, outras que já não tem fé na própria vida mas que trabalham para que seus filhos possam realmente aproveitar a vida. Nunca decidi o que irei fazer do futuro, jamais pensei em uma profissão, mas sei que não serei como essas pessoas.

Embarco no trem e sento na janela, ponho minha mochila ao lado, destruindo qualquer possibilidade de alguém se sentar a minha direita e faço toda viagem olhando apenas pela janela, claro que segurando a mochila pela alça para evitar algum roubo. Não é esforço algum olhar por esta janela, grande parte do caminho é cheio de flores das mais diversas cores e espécies, tem uma história sobre essas flores, minha tia sempre que nos levava ao centro da cidade nos contava essa história, eu e meus primos já estamos enjoados de ouvir, mas Mary adorava o conto, ela conta que no passado havia uma senhora viúva e sem nenhum filho, mesmo assim muito simpática, e que todo dia de manhã saía de casa, pegava um pacote de sementes e ia para o centro jogando as sementes pela janela e do centro ia visitar o tumulo de seu marido, passava na floricultura e voltava jogando novas sementes, muitos achavam que ela estava enlouquecendo de depressão e carinhosamente a apelidaram de Tia Natureza. Depois de um tempo ela não apareceu mais e com a suspeita de que ela havia morrido foram até sua casa, lá eles viram um bilhete que dizia:

"Por mais que minha vida tenha sido miserável por não ter tido filhos que carregaram minha história, deixei minha marca a beira trilho"

O escrito estava no balcão da cozinha e atrás da casa encontraram seu corpo preso a uma arvore e com "preso" quero dizer, amarrado com uma corda no pescoço.

Não demora muito para que eu chegue ao cartório e me sente no banco no banco, eu tenho que ir falar com a moça do balcão mas tenho muito medo de que ela morra pela assombração que me persegue, é uma bela moça de olhos castanhos, cabelos loiros e presos, bem ocupada, levando papeis para todo lado. Fico sentado lá por meia hora até que digo à mim mesmo que basta, me levanto, vou até a moça e digo:

- Olá

Ela me olha com uma cara de nojo, como se eu fosse um moleque drogado, mas mesmo assim me responde:

- Oi, posso ajudá-lo?

- Eu gostaria de saber se você pode me ajudar a descobrir o endereço de meus avós, eu perdi meus pais há uns anos e agora eles são os entes mais próximos de minha família materna.

- Olha, eu posso ter documentos aqui, mas nenhum deles contêm endereços, o que você deve fazer é ir na delegacia, lá talvez consiga algo.

Fico decepcionado, eu fui muito burro, deveria ter pensado que isso não daria certo, me despeço da moça e vou embora, vou até um estacionamento onde me sento em uma mureta, pego o gravador e:

BssTsss (liga o gravador)

26 de novembro de 1997, não sei o que fazer, desde minha ultima gravação aconteceu muita coisa, resolvi que tenho que investigar meus avós maternos, mas não sei onde nem como encontrá-los , o único jeito é ir na delegacia, mas se fizer isso posso ser preso novamente, finalmente descobri o que a assombração faz comigo, ela me isola, me impede de me relacionar qualquer um, não posso conversar com ninguém se não a pessoa morre.

BssTsss (desliga o gravador)

Guardo o gravador no meu bolso e sinto que o bolso está ligeiramente mais volumoso, então viro do avesso e tiro 2 papeis, são os bilhetes que Ernest me deu antes de sair do Hospício, o primeiro diz: "leia depois de sair daqui", desdobro o segundo e (...)

"Eu sou seu avô."

MaldiçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora