Capítulo 33 - Uma pausa merecida(3)

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Alguns dias de passaram desde que entrei no mundo pessoal de Morang. A calmaria e imensidão de paz naquele local se infiltraram em mim como água caindo sobre um copo de areia, preenchendo aos poucos lacunas que nem eu mesmo sabia que tinha.

Era uma vida calma rural, misturada com um ar de sofisticação. A rotina de Morang era parecida com as histórias que eu lia da vida no século 15 só que com um toque de "magia", e modernidade envolvido.
Dentro da mansão existia eletricidade, geladeiras e dispensas de alimentos, que estavam muito fartas, Morang conseguia criar "monstros" de qualquer tipo apenas com o próprio pensamento, me mostrou diversas formas de preparar-los como se fossem apenas uma carne de animal comum.

Ela também cuidava de alguns animais quase comuns, digo quase pois as eram versões que variavam muito do convencional.
Um dia pela manhã ela me mostrou a granja de galinhas azuis estreladas, um monstro de grau 1 que tinha a aparência de uma galinha, mas facilmente seria capaz de limpar e destruir uma cidade, se os dinossauros evoluíram até chegar nas galinhas, então essa era uma galinha que manteve seu tamanho e retrocedeu até superar um dinossauro.
Pois é, eu lembrava dos dragões de grau 1 vermelhos mais rápidos que um caça militar e por um instante me espantei. Eu estava desarmado e facilmente poderia morrer se levasse um ataque direto.

Morang por sua vez, tratava eles como simples animais de fazenda, e com sua voz amável, deu uma leve risada me explicava:
—Hohou, nada aqui dentro vai te machucar bobinho, não precisa ficar aflito. Eu apenas gosto de usar os melhores ingredientes possíveis na culinária.

Todos os "animais" presentes eram as versões mais evoluídas possíveis de monstros. Os diversos pastos e acervos eram controlados automaticamente por Morang que todas as manhãs saia para coletar alguns ovos e leite, e preparava a medida certa de pães e as vezes alguns pequenos bolos e tortas.

—Eu realmente, não lembro mais nem mesmo quando foi a última vez que eu tomei um café tão bom.
Eu falava enquanto saboreava um café de torra personalizada que Morang tinha deixado disponível. Tanto o aroma quanto o gosto eram perfeitos.

Após o começo das guerras rúnicas o único império que conseguiu manter a produção de café foi o brasileiro. Tornou ele uma especiaria que só podia ser saboreada pelos poucos membros da elite, de cada país em situações especiais e por ser o braço direito de Vlad eu consegui obter acesso.
—Fico feliz que tenha gostado.
Morang sorria de volta para mim, com um ar de empatia.

Alguns mantimentos ela comprava diretamente da loja dos administradores, outros também estavam presentes com diversos hectares de fazenda. Todos eles administrados pela própria Morang. Açúcar, trigo, café, entre diversas outras culturas estavam espalhadas e cresciam de forma uniforme.
Conforme Morang me mostrava tudo havia um questionamento dentro de mim.
—Muitas dessas culturas além de crescerem rápido demais, conseguem crescer independente de conceitos como "clima" e "temperatura", então como isso funciona?

O dia e a noite nesse mundo fluia  normalmente, mas ainda assim era um tanto mágico até demais. Morang ao meu lado encostou a mão em um ramo de trigo que rapidamente saiu de verde até o perfeito estado de colheita. E fez outro grão idêntico surgir do nada na outra mão.

—Por mais que eu possa replicar algo, desde um ser vivo, ou até mesmo forçar essa planta a crescer, caso eu apenas colha ela assim o gosto e a qualidade não são os mesmos. Mesmo que você peça para um padeiro profissional que usa exatamente a mesma receita desde sempre para fazer bolos, o gosto nunca vai sair igual.
—Isso é por existir variações humanas imprevisíveis que mesmo que pequenas possam alterar a receita e quantidade de ingredientes, não?

—Não, isso é porque a experiência momentânea ou à «História» associada a algo nunca vai ser idêntica.
—Você quer me dizer que mesmo que o bolo fosse exatamente igual, ainda assim o gosto seria diferente? Isso não faz sentido.
—Mesmo que você estivesse na mesma posição que o meu filho, e trilhasse o mesmo caminho de vingança e acumulação de poder a sua «História» poderia acabar diferente.

Ela não me respondeu mais do que isso, o que me deixou com uma pulga atrás da orelha por um tempo enquanto eu refletia.
Com o tempo eu comecei a relacionar isso com o conceito de individualidade, e assim adquiri uma certa interpretação sobre aquelas falas.

Nesse mundo, as constelações podem comprar «Histórias», que serviam tanto como alimento, como habilidades ou como identidades. Em suma maioria histórias não são únicas, duas pessoas podem trilhar a mesma história, e encontrarem interpretações diferentes ao longo do caminho para a mesma.
Enquanto Morang tomava o seu chá da tarde eu a acompanhava tomando um café e perguntei:

—O que você queria me dizer antes é que a verdadeira identidade, ela existe no processo de criação de uma «História» e não somente no valor de assimilação dela em sí?
—Quase isso. O processo e a assimilação são dois conceitos igualmente importantes para as constelações, não existe valor se ambos não estiverem alinhados.
Ela tomou um pequeno gole do chá e me fez a pergunta que ninguém nunca havia sequer me dado a opção:

—O que você realmente deseja?

Eu... Nunca havia parado para pensar nisso. Era algo tão óbvio então, por quê? Por que eu nunca parei para pensar em algo tão simples.

—Você conhece a história do meu filho, ele adquiriu poder, acumulou mais e mais, e continuou acumulando até um ponto onde poderia até mesmo tentar desafiar o sistema, mas ele ainda buscou mais, envolveu e influenciou todos à nossa volta em um ciclo de poder sem propósito, até que simplesmente colapsou em sí mesmo.

—Então a "traição de Taizhong"... Não foi somente contra você, ou contra o sistema... No final não foi isso que tornou ele "a primeira calamidade".
A ideia que eu tive me dava calafrios, isso não podia ser verdade...

— A mensagem de "Lutar contra o sistema", "se vingar do sistema", "não deixar aceitar que algo te controle", no fim, se não existisse o sistema isso pode ser chamado de propósito?

—No fim... O que ele traiu foi a própria «História».

—Sim, mesmo antes do sistema, que é bem recente, ele já tinha ideias próximas a isso, a busca incessante pela força sem significado, o sistema da estrelinha amarela só deu a ele a última gota que faltava pra barragem estourar.

—Então a corrupção foi espalhada através de uma "quebra de história mítica". Uma jornada sem propósito.
Uma mensagem do sistema apareceu à minha frente, me deixando ainda mais desconfortável.
[Você adquiriu todos os conhecimentos acerca do efeito de quebra de história, a sua margem de plausibilidade aumentou gritantemente.]

— A própria «História» do meu filho no final era apenas... Vazia, e isso iniciou a corrupção.

Propósito, conceito e identidade. No fim, Taizhong traiu a si mesmo... E o motivo de Morang me contar tudo isso...

—Você acredita, depois de ver o meu passado, que eu vou trilhar o mesmo caminho de Taizhong.
Eu realmente sinto um pouco de ódio e desgosto ao sistema, consigo ver facilmente que eu posso acabar caindo no mesmo fim que Taizhong.... Então... Foi por isso que no final ele me disse que "Ele é e está no meu fim."

Eu prossegui.

—Acho que no fim, ele puxou um pouco você no sentido de previsões.
Morang estava desde o começo receosa principalmente com isso. E agora eu entendo ela um pouco mais.

Me levantei da cadeira e com as minhas duas mãos segurei na mão direita de Morang.
Fixei meus olhos em meio a imensidão dos olhos caramelos de Morang e recitei.

—Eis aqui, diante de você meu novo juramento de «História», eu juro jamais trair meu propósito, conceito ou identidade.

Na mesma hora um brilho dourado apareceu no meu peito como se cortasse minha pele, ele estava reescrevendo a minha história. E uma notificação do sistema apareceu.

[Novo juramento de «História» foi criado oficialmente, os efeitos são desconhecidos, e variam de acordo com a sua plausibilidade.]

Morang dessa vez sorriu com um profundo alívio em seu rosto e disse:

—Você realmente consegue até mesmo surpreender uma velha como eu, né garoto.
Morang levantou e colocou a minha cabeça próxima ao seu coração com uma mão e me abraçou forte com a outra.

Realmente... Muito obrigada por isso...

Why Gods Are So DumbOnde histórias criam vida. Descubra agora