capítulo 6

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Kisa se enfiou mais fundo na cadeira acolchoada da mesa de estudo, puxando os pés para perto do corpo e envolvendo-os em um abraço confortável

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Kisa se enfiou mais fundo na cadeira acolchoada da mesa de estudo, puxando os pés para perto do corpo e envolvendo-os em um abraço confortável. Os dedos finos deslizavam pelas páginas do livro de direito, tentando absorver as complexas leis que pareciam se esvair de sua mente a cada instante. O ar frio que se infiltrava pelas frestas da janela trazia consigo o cheiro úmido da terra e o rugido da chuva incessante, criando uma melodia melancólica que a embrulhava em um abraço sombrio.

Seus longos cabelos loiros, que normalmente caíam em ondas sobre seus ombros, estavam presos em um rabo de cavalo alto, prendendo-os firmemente para evitar que caíssem sobre seu rosto enquanto ela se esforçava para manter a concentração. O pijama macio de algodão, um presente da avó, envolvia seu corpo como um abraço reconfortante, mas a sensação cálida não conseguia dissipar a crescente inquietação que se instalava em seu peito.

A chuva havia se intensificado, e a sensação de isolamento que a cercava, usualmente reconfortante em seus momentos de estudo, agora era carregada por um fio de apreensão. Ela podia sentir o olhar fixo sobre si, como se uma presença invisível se aproximasse, espreitando nas sombras da noite. A pele arrepiou, e seus dedos começaram a tremer levemente.

A luz do abajur projetava sombras estranhas no quarto, distorcendo os móveis e transformando as paredes em uma tela distorcida. As árvores balançavam angustiadas na tempestade, seus galhos esqueléticos raspando contra as janelas, como garras gélidas ansiosas para se introduzir em sua privacidade. O som da chuva parecia se intensificar, cada gota parecendo martelar em seu coração, a cada vez mais forte e invasivo.

O som de uma respiração ofegante, próxima demais, a tirou de seus estudos. Kisa congelou, com o livro de direito a segurando ainda mais apertado contra o peito como um escudo. O ar ficou denso, carregado de uma sensação de opressão. A sombra do medo se estendia como um tentáculo, envolvendo-a em seus laços frios.

Ela tentou se levantar, mas os pés pareciam presos ao chão, como se uma força invisível a estivesse segurando, a mantendo presa dentro de sua própria casa, que agora havia se transformado em uma armadilha. Os olhos dela se esbujaram, buscando em vão algum indício, alguma ameaça visível entre as sombras, mas a névoa densa da noite se recusava a revelar seus segredos.

Um novo estrondo de trovão, seguido por um clarão de eletricidade que iluminou o quarto, fez Kisa encolher-se na cadeira. O ar ficou carregado, um cheiro metálico se espalhou, e a sensação de estar sendo observada se intensificou. Ela sabia, no fundo, que não era apenas a chuva que causava essa inquietação. Algo estava errado. Algo estava ali, espreitando na penumbra, observando-a com a mesma intensidade que ela sentia seu medo se aproximar.

A chuva de outono tornou-se um véu de escuridão, uma barreira invisível que a separava do mundo exterior. Mas, no interior de sua própria casa, Kisa sentia a presença de algo desconhecido, algo que parecia conhecê-la, que a observava com um olhar sombrio, frio como a própria tempestade que assolava a noite.

Kisa apertou os olhos, um sopro de ar quente escapando de seus lábios. As palavras do medo se transformaram em um murmúrio silencioso de oração. Seus dedos finos se fecharam em torno do rosário branco, as contas lisas e frias deslizando entre eles, quase que hipnoticamente.  A fé, uma chama fraca que ardia em seu peito, se acendeu, alimentada pelo desespero e pela certeza de que não era algo humano que a observava.

Ela não conseguia explicar, mas a energia que emanava daquela sombra invisível era diferente de qualquer coisa que ela já tivesse sentido. A presença era pesada, opressiva, um frio gélido que se espalhava pelos seus ossos.  O cheiro de terra úmida e a sensação de um olhar fixo, carregado de uma intensidade quase palpável, a convenceram da natureza sobrenatural da ameaça.

O rosário, uma herança de sua avó, se tornou um escudo contra o inexplicável.  Ela começou a rezar baixinho, as palavras em latim, aprendidas na infância, fluindo como um rio, um mantra ancestral para afastar o mal.  "Ora pro nobis, peccatoribus, nunc et in hora mortis nostrae."  A cada palavra, um fio de esperança se acendia em seu coração. 

O ar ficou mais denso, a sensação de opressão se intensificou, como se a entidade estivesse respondendo ao seu apelo. Mas Kisa, movida por uma fé antiga, continuou a murmurar a oração, a voz tremendo levemente, mas os dedos segurando o rosário se fortaleceram.  Ela sentiu um leve tremor de medo, mas se manteve firme, a determinação de enfrentar o desconhecido, de evitar que o mal cruzasse o limiar da sua alma.

Cada vez que se curvava e reza, as sombras pareciam se mover, pululando nas paredes, uma dança macabra que espelhava a batalha entre a fé e o medo.  A chuva continuava a bater contra as janelas, como se a tempestade estivesse acompanhando a luta interior da menina. A sombra, a presença sobrenatural, pareceu recuar, como se a energia emanada do rosário fosse uma muralha invisível.

No entanto, Kisa sabia que a batalha não estava ganha. A ameaça ainda pairava sobre ela, espectando o momento certo para voltar. Ela se encolheu na cadeira, envolvendo o rosário contra o peito, buscando a segurança que aquela crença lhe proporcionava.  No silêncio ensurdecedor do quarto, ela ouviu o som da sua própria respiração, uma melodia que se juntava ao murmúrio incessante da chuva.  Ela sabia que a noite mal começara, mas também sabia que não estava sozinha. A promessa da oração, a crença ancestral, uma armadura frágil, mas poderosa, a mantinha firme, pronta para encarar o que quer que a escuridão escondesse.

Perene - Toji Fushiguro Onde histórias criam vida. Descubra agora