Ah, minha querida… eu já não tenho mais muito tempo. Cada palavra que sai de mim parece carregar o peso de todos esses anos, como se minhas memórias se arrastassem pelas sílabas, cansadas, desgastadas. Eu olho pra você, tão jovem, e me pergunto o que poderia te dizer que fizesse alguma diferença. O que um velho como eu, que já viu e perdeu tanto, pode oferecer a alguém que ainda tem tanto pra viver?
Eu já vivi demais, mais do que qualquer homem deveria. Vivi tempo suficiente pra ver a bondade virar pó, pra sentir o gosto amargo do ódio e da dor impregnado em cada canto do meu ser. E a guerra… não, a guerra não é como nos livros ou nas histórias de glória. A guerra é o que te destrói por dentro, te rouba a alma e te devolve um corpo vazio. Eu me lembro dos rostos daqueles que matei, mais do que dos rostos daqueles que amei. Isso, menina, é o que a guerra faz. Ela te tira o que há de humano, transforma você em algo que nem a si mesmo reconhece.
Eu fui um soldado, é o que dizem. Um guerreiro, um homem que lutou pelo país, pela liberdade. Mas nada disso é verdade. Eu fui só mais um peão, jogado num jogo que nunca entendi, lutando contra inimigos que não conhecia. E quando a luta acabou, o que sobrou de mim? Um homem torturado, não só pelas mãos de outros, mas pelo peso do que fiz e do que vi. Não há glória nisso. Só há dor.
Sabe, a dor física a gente aguenta. Eu suportei mais do que achava possível. Ossos quebrados, carne rasgada, noites intermináveis de agonia. Mas a verdadeira tortura é a que fica depois, quando o corpo finalmente se cura, mas a mente… ah, a mente nunca se cura. Eu carrego essas feridas aqui, dentro de mim, desde que a guerra acabou. E elas nunca cicatrizam. Elas sangram em silêncio, todos os dias, e me lembram de que, por mais que eu tenha sobrevivido, eu nunca voltei de verdade.
Eu queria te dizer que a vida vale a pena, que há algo a ser encontrado no final dessa estrada longa e tortuosa. Mas, menina, eu mentiria se dissesse isso. A vida é um peso. Um fardo que, quanto mais tempo você carrega, mais pesado se torna. Quando você é jovem, você sonha com futuro, com propósito, com amor e sentido. Mas quanto mais o tempo passa, mais você percebe que essas coisas são frágeis, ilusões que nos mantêm em movimento até que, um dia, você se cansa. E o cansaço, esse cansaço… ele te consome. Ele tira o brilho dos olhos, enfraquece a vontade, faz com que cada dia seja só mais uma batalha perdida contra o vazio.
Você ainda tem esperança, eu vejo isso. E eu queria poder te dizer que ela vai te salvar. Mas, menina, a esperança é só mais uma mentira que contamos a nós mesmos. Eu esperei por tantos anos… esperei por paz, esperei por redenção. Esperei que o mundo, de alguma forma, me devolvesse o que ele havia tirado. Mas não devolveu. Nunca devolve. O mundo é indiferente à nossa dor, e a vida segue, implacável, até que a morte venha e nos leve.
E agora, aqui estou eu, à beira do fim. Cada respiração mais difícil que a anterior, cada batida do meu coração uma lembrança de que ele está prestes a parar. E o que restará de mim, menina? Nada. Nem mesmo as lembranças. Quando o último suspiro for dado, não haverá mais nada. Todo esse peso, toda essa luta… tudo vai desaparecer. E o que eu vivi? O que fiz? Nada que importe. Somos todos sombras que um dia se apagam, e quando a luz finalmente se apaga, nada restará. Nem mesmo o eco de quem fomos.
Viva, menina, enquanto pode. Mas saiba: não há final feliz. Não há respostas esperando no fim. Só o vazio. E talvez, quando você chegar lá, assim como eu, entenderá que o verdadeiro descanso não está na vida, mas no fim dela. E, quando o fim chegar, você verá que ele é tudo o que nos resta.
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O Enigma do Ser
PoetryA existência e suas calamidades, a experiência em nosso estado natural como seres vivos e pensantes, quem somos nós ou o que deveríamos ser? A vida é uma jornada, e em suas fases buscamos nossos sentidos: na infância, o aprendizado; na maturidade, s...