A Carne Esfria no Silêncio

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Os algozes nem esperam a carne esfriar
para usurpar o que não é seu.
Nas ruas vazias, a fumaça se eleva,
mas não há cheiro de luto, apenas um ar pesado,
de coisas que se perdem no não-dito,
de corpos que caminham sem saber se vivem ou se vão.

Não há tempo para a dúvida,
nem espaço para a palavra,
a sombra do aço é que nos guia,
e a liberdade, um sussurro que ecoa fraco.
Quem olha, quem sente?
Afinal, já nem sei se os olhos são meus,
ou se fui moldado para ver apenas o que convém.

A carne esfria, mas não na velocidade da morte.
Ela esfria ao toque do poder,
ao peso das promessas que queimam os lábios,
ao som das verdades distorcidas,
que sussurram suavemente,
que a paz é o silêncio da resistência morta.

E eu, que caminho entre cinzas,
penso: será que o medo é meu,
ou foi plantado, como um espinho invisível,
que, quando crava, já não sinto o que sou?
Será o medo o escudo que me faz sobreviver
ou a lâmina que corta minha voz?

Os algozes nem esperam a carne esfriar.
Tomam o que não é deles com mãos vorazes,
mas o que é “deles”?
Talvez, nesse tempo de mentiras polidas,
seja apenas um roubo invisível,
um jogo em que nos ensinam a perder
antes mesmo de sabermos que estamos jogando.

E eu, que sou todos e sou ninguém,
me encolho, não por falta de coragem,
mas por excesso de dúvida,
por saber que o grito ecoa, mas não chega.
Que a resistência arde, mas não cura.
Será que a carne que eles tomam
um dia foi minha,
ou sempre pertenceu ao ar pesado,
à fumaça que envolve tudo e todos?

Mas há algo mais profundo.
Um medo que não é só de aço,
mas de esquecimento.
De ver a carne esfriarem-se as memórias,
as lutas que um dia existiram em nós,
antes de sermos marionetes
presas em fios que jamais vimos,
mas que nos guiam por becos sem saída,
por corredores infinitos.

Os algozes não esperam,
e, às vezes, me pergunto:
será que nós esperamos demais?
Que a carne esfrie,
que o tempo passe,
que a opressão se dissolva sozinha,
como se a espera fosse revolução.

Eu respiro fundo, mas o ar já não é puro.
As palavras se enredam e se perdem,
e, no fundo, eu sei:
os algozes sempre saberão tomar o que não é deles,
porque nós já não sabemos o que é nosso.

O Enigma do SerOnde histórias criam vida. Descubra agora