❪ 𝟎𝟎 ❫ 𝒫𝑹𝑶𝑳𝑶𝑮𝑼𝑬

5.4K 562 180
                                    

𝖼𝗎𝗅𝗉𝖺

Beatrice sempre se achou diferente da mãe

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

Beatrice sempre se achou diferente da mãe. Enquanto a mulher, devota e fiel à igreja, frequentava missas e rezava todos os dias, Beatrice vivia com os pés no chão, sem tempo ou paciência para o que considerava uma crença cega e ultrapassada. Desde pequena, ouvia sua mãe falar sobre a importância da fé, sobre Cristo e o amor de Deus, mas essas palavras entravam por um ouvido e saíam pelo outro.

"Isso é perda de tempo, mãe. Não faz sentido," dizia com frequência, sem perceber o pesar que essas palavras traziam para ela.

── Você nunca entende. ── dizia sua mãe, com o olhar triste. ── Tudo isso importa, Beatrice. Um dia você vai perceber.

Beatrice suspirava e saía de casa, se afastando de qualquer sermão. Sempre foi assim: sua mãe tentava, e Beatrice fugia. Fugiu de todas as missas, de todas as conversas. Nunca ouviu os alertas, nunca deu importância às preocupações.

Até aquele dia.

A casa estava silenciosa, como sempre, mas o ar estava denso, pesado. Beatrice voltara da rua e, ao abrir a porta, notou algo estranho. A sala estava escura, exceto por uma luz fraca que vinha do quarto de sua mãe. Uma sensação ruim começou a crescer dentro dela. Sentiu uma urgência que nunca havia sentido antes. Correu até o quarto.

A porta estava entreaberta. Beatrice empurrou lentamente, e o que viu a marcou para sempre.
Sua mãe estava ali, parada diante da janela aberta. As mãos trêmulas seguravam uma carta. Seus olhos, inchados e vermelhos de tanto chorar, cruzaram com os de Beatrice por um instante. O momento parecia suspenso no tempo.

── Mãe? ── A voz de Beatrice saiu fraca, incerta. ── O que você está fazendo?

── Eu não consigo mais, filha. ── murmurou, as lágrimas caindo em silêncio. ── Eu só queria te salvar, te mostrar que há algo além deste mundo... mas você nunca me ouviu.

Sua mãe soltou a carta no chão, e com um gesto lento, cruzou os braços sobre o peito, em um último sinal de fé. Sem dizer uma palavra, sem hesitar, se jogou pela janela.

O grito de Beatrice ecoou pela casa. Ela correu até a janela, mas era tarde demais. A mãe estava caída lá embaixo, inerte, em meio ao jardim onde antes cuidava das flores.

A culpa se abateu sobre Beatrice como uma onda imensa e sufocante. Ela não podia acreditar no que tinha acabado de acontecer. As palavras de sua mãe ecoavam em sua mente. "Você nunca me ouviu." Ela nunca prestara atenção nos sinais, nunca tentou compreender a dor que sua mãe carregava.

A dor da perda era insuportável, mas o peso da culpa era ainda pior. A ideia de que, talvez, se ela tivesse sido diferente — mais presente, mais compreensiva, mais atenta às palavras da mãe — nada disso teria acontecido. A ideia a consumia, e as noites eram preenchidas por pesadelos, onde via o olhar vazio da mãe lhe dizendo que nunca foi suficiente.

Sem saber como lidar com o luto e o arrependimento, Beatrice tomou uma decisão que mudaria sua vida para sempre. Ela começou a frequentar a igreja. No início, era um gesto desesperado de redenção, uma forma de tentar aliviar a culpa que a corroía. Ela se agarrou à fé como uma tábua de salvação. Passou a rezar todos os dias, a estudar os ensinamentos que sua mãe tanto venerava, e com o tempo, uma ideia começou a tomar forma em sua mente.

Beatrice decidiu que precisava fazer mais. Precisava se dedicar completamente à fé, como uma forma de compensar os anos que negligenciou os pedidos da mãe. E, talvez assim, encontrasse a paz que tanto buscava.

Ela ingressou em um convento, tornando-se uma freira. A vida no convento era de silêncio, trabalho e oração — um contraste absoluto com a vida que Beatrice tinha conhecido. Ela acordava antes do sol, dedicando horas à contemplação e à comunhão com Deus. As irmãs do convento eram gentis, mas Beatrice carregava dentro de si um fardo que nenhuma oração parecia aliviar.

Cada missa, cada rosário, cada ato de penitência era uma tentativa desesperada de expiar a culpa. No fundo de seu coração, ela acreditava que, se se entregasse completamente à vida religiosa, poderia alcançar a redenção — não apenas aos olhos de Deus, mas aos de sua falecida mãe.

Mas mesmo vestida com o hábito, mesmo vivendo entre as paredes frias e austeras do convento, Beatrice não conseguia se livrar das lembranças. O rosto de sua mãe, o último suspiro, as palavras de despedida, tudo isso a assombrava. Sua fé era uma âncora, mas também uma lembrança constante do que havia perdido.

A jovem se tornou uma das freiras mais devotas, reconhecida por sua disciplina e dedicação. No entanto, dentro de si, Beatrice sabia que a verdadeira paz nunca chegaria. Porque, embora buscasse a redenção em cada gesto, no fundo de seu ser, sentia que nada que fizesse seria suficiente para apagar o peso daquela culpa.

Assim, Beatrice continuava vivendo sua nova vida, imersa na fé, mas eternamente marcada pela memória de sua mãe e pela dor de ter ignorado sua voz até o último momento.

𝒞𝐎𝐑𝐑𝐔𝐏𝐓٫ 𝒄𝒉𝒂𝒓𝒍𝒊𝒆 𝒎𝒂𝒚𝒉𝒆𝒘Onde histórias criam vida. Descubra agora