4| VOCÊS NÃO FORAM ATÉ LÁ?

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Os outros dias da semana foram um completo borrão para mim, passava o dia trancafiada na minha sala ou então na sala da equipe de projetos aturando as discussões entre Helena e Bianca, os gritos histéricos e desnecessários do Ângelo, ou Nathan sempre reclamando da luz e do vento.

O chefinho teve coisas muito melhores que fazer do que aturar, junto comigo e Carlos, as infantilidades dos outros.

A noite, sempre que tentava esquecer e ignorar o que quer que estivesse acontecendo me perdia no medo e ligava para Eunice dizendo que passaria a noite com ela. Estava me sentindo estranha e não era para menos, ela era a única que realmente conhecia quem era Samantha Borges e só ela sabia como eu estava ficando louca porque eu poderia jurar que há alguém me seguindo para todo o lugar nos últimos dias.

Me lembro da noite de dois dias atrás, saí disparada do apartamento, sem dar explicações, sem fechar a porta, sem me dar ao trabalho de nada, afinal ela já estava destrancada quando cheguei.

As luzes não acendiam e eu me dei conta do porquê apenas quando um grosso e pontiagudo estilhaço de vidro perfurou o meu pé num dos corredores, arrancando de mim um grunhido de desaprovação e dor.

Passei pela porta do banheiro acreditando veementemente que dias atrás havia mudado a caixinha dos primeiros socorros para o meu quarto dado em conta que se eu sou a atrasada, Eunice era o completo desastre.

Conhecendo aquele lugar tão bem como eu conhecia o meu antigo quarto na casa de meus pais em xxxx, o fato de as luzes também não estarem funcionando não me surpreendeu. Apoiada as paredes segui pela mesinha logo ao pé da porta, passei pelo grande armário e me virei a 90° pronta para caminhar para frente onde certamente encontraria a minha cama com o criado mudo ao lado onde estariam os primeiros socorros.

Uma pequena fresta de luz passou pela janela e novamente lá estava ela aberta sem eu saber como ou quem a deixou assim, porque de certeza eu não fui e Eunice em viagem para eventos de gala também não. Ainda assim não tive tempo de reclamar porque um grito se instalou na minha garganta assim que tropecei e cai distraída com o lado de fora do quarto, algo duro e frio, mas suave e estava coberto... Não, eram roupas, me virei para averiguar o que era para estar ali e desta vez nem mesmo o grito decidiu sair.

Esqueci a dor no pé que estivera me fazendo mancar nos últimos minutos e corri para sala, estava com a bolsa em mãos e não me importei de estragar meus sapatos novos com sangue quando desesperadamente enfiei o pé pra dentro e corri para fora do prédio.

Ouvi alguém me chamando na recepção sem que eu conseguisse prestar atenção a volta com o medo que ameaçava crescer em mim e me devorar enquanto ainda tentava acreditar no que pensava ter visto. Para minha frustração, aquilo foi o gatilho perfeito para me trazer a mente lembranças que eu tanto desejava esquecer e que muito havia me esforçado para apagar da minha vida. A mesma vida que não sabia se manter monótona e agradável como eu mais poderia desejar.

Encolhida andei apressada pela calçada ignorando aos densas nuvens escuras ameaçando uma noite de chuvas. Senti o toque de uma mão fria no meu ombro justamente para me assustar e fazer sair  correndo para o meio da estrada, um carro passou a poucos centímetros de mim e havia outro vindo na mesma direção porém com muita dificuldade em travar antes que embatesse em meu corpo.

Vi o rosto da mulher ao volante se converter em desespero a medida que o automóvel se aproximava cada vez mais. Aquilo bem que poderia ser o meu maior pesadelo e o dia que eu mais desejava não ter vida para poder ver, só que momentos antes de eu receber o choque do embate, duas mãos grandes e fortes me tiraram dali onde eu estava estática, me levanto de volta a calçada.

— Samantha, olha para mim, você está bem? Samantha está me ouvindo? Samantha!

Com um arquejar sofrego olhei para o homem que me prendia contra ele, sacudindo os meus ombros na tentativa de chamar a minha atenção, mas a imagem não saía da minha cabeça, as lembranças me perseguiam com força total como nunca antes.

— Lá dentro... — um fio do que era a minha voz conseguiu soar — está lá dentro... Aquilo... Eu... Camilo.

E não resisti quando o meu corpo amoleceu em seus braços e minha mente lentamente veio a desvanecer.

(...)

Dois dias depois acordei em uma cama de hospital, Eunice estava lá comigo e me contou tudo o que havia acontecido, teria de ficar ali por mais alguns dias pois minha pressão arterial não estava lá nos seus melhores dias.

Ela levou bolo de morango para mim e partilhamos ele enquanto ela me contava com muito cuidado o que havia acontecido enquanto eu estava imersa em delírios febris e desmaios. Não sabendo se era obra do destino ou se minha amiga havia ganhado o poder de fazer invocações, quando tocamos no quesito trabalho todos os meus colegas — o chefinho bonito e estressado incluso — entraram pela porta do meu quarto hospitalar.

— Já era hora de acordar né menina, olha as horas.

Todos se aproximaram e me abraçaram, digamos todos já sabendo que Camilo não era o mais socialmente expressivo. Conversamos durante uma hora inteirinha e apartir daí eles começaram a despedir-se, Eunice pediu licença para ir ao banheiro deixando apenas eu e o chefinho bonito no quarto de hospital.

— Vai ralhar comigo por ter perdido alguns dias de trabalho? — indaguei, sabendo que era o suficiente para deixar o filhinho mimado de cabeça quente.

— Eu estaria bem mais preocupado com o seu estado de saúde se não houvesse outra coisa tomando esse lugar. — ele parecia sério e pensativo, dentre todos ele é quem havia falado menos e não era por ser todo reservado. — uma coisa bem estranha, Samantha.

— Se for quanto ao meu atraso no restante da semana, eu... — fui (educadamente?) Interrompida.

— Só quem não a conhece ligaria para isso. Quero é saber o que de tão tenebroso havia na sua casa para a fazer sair correndo e quase ser atropelada.

— Vocês não foram até lá?

— É claro que fomos, Samantha. Só não havia nada além de cacos de vidro para todo lugar.

— No meu quarto... Não foram até o meu quarto? — indaguei com um certo quê de hesitação na voz — o que foi que acharam lá?

Camilo olhou para mim por um longo momento, analisando cuidadosamente minha expressão confusa e desentendida antes de responder.

— Não encontramos nada como eu já disse. Cacos e um pouco de sangue respingado que logo associamos ao seu pé ferido. Nada mais do que isso.

— Como não? Mas havia lá... — uma batida na porta fez sintonia com o chamar do telefone de Camilo e ele se levantou para atender pedindo licença — ... Havia aquela coisa...

Quando ele saiu do quarto senti  uma onda de tontura e me obriguei a voltar para dentro dos lençóis, momentos antes de o rosto um tanto familiar aparecer no meu campo de visão, embaçado e quase completamente apagado.

O seu sorriso esmoreceu e o que quer que estava em suas mãos foi deixado a Deus dará quando Henrique Monteiro me ajudou a deitar, antes de eu apagar completamente, com o choque que só eu poderia sentir do que Camilo havia me dito.

Eu tinha certeza do que vi e não poderiam me fazer acreditar no contrário. Eu tenho certeza.

Aquela coisa, velha, fria, dura e enrugada era a cabeça de alguém... De um certo alguém que eu conhecia bem.

 De um certo alguém que eu conhecia bem

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