Luiza

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Eu observava todo o movimento da janela, já fazia alguns anos que observar era tudo que eu podia fazer. Viver através de observar as pessoas vivendo. E lá estava eu, vendo o caminhão parado e de lá saiu uma jovem senhora que rapidamente agitava tudo como se já tivesse feito aquilo milhares de vezes. Do outro lado do caminhão, um menino lindo. O mais lindo que eu já tinha visto e me senti sem ar, sem conseguir desviar os olhos dele. Vi eles descarregando tudo e depois o menino abraçando a senhora enquanto o caminhão partia. Eram os novos moradores da casa que ficava exatamente de frente a minha. A rua estreita fazia com que conseguíssemos observar tudo muito bem. A curiosidade gritou dentro de mim e mesmo com os meus pais me chamando eu não conseguia deixar de observar os novos vizinhos. Não acontecia nada na minha vida que não fosse através dos livros ou filmes, então observar aquela novidade me deixou muito animada. Ninguém reparava em mim mesmo, eu tinha o incrível poder da invisibilidade, poderia passar a vida naquela janela que ninguém notaria minha presença. As pessoas nunca olhavam pra cima e o hábito de observar tudo que acontecia era frequente. As únicas pessoas para quem eu não era invisível, eram meus pais e minha amiga Nina. Eu não posso dizer que me sentia deprimida, aceitava o fato de que nada iria mudar minha condição. Ficar triste ou com raiva não faria nada ser diferente. Ficar presa à cadeira de rodas afastou todos que me conheciam e aos poucos a ficha caia de que a minha vida nunca mais seria a mesma, não importava o que eu fizesse, eu nunca seria uma adolescente normal. E a prova disso é que não tinha mais amigos, não era convidada para festas, não iria dançar e nunca chamaria atenção dos rapazes. Nina foi a única amiga que continuava vindo me ver mas no fundo no fundo eu não tenho certeza se ela ficou porque realmente é minha amiga ou porque se sente culpa pelo acidente. Eu sei que ela não teve culpa, mas o olhar que ela passou a dirigir a mim, desde que tudo aconteceu, me faz pensar que é um sentimento de culpa que ela tem. Mesmo com essa dúvida, como ela foi a única amiga que me restou, preferi não perguntar nada. Me senti egoísta com medo da resposta e se de algum modo eu aliviasse a sua culpa, ela não se sentiria mais na obrigação de vir e sumiria da minha vida como todos os outros.
A escola virou um tormento, tudo era difícil, nada adaptado, tudo virava uma luta para os meus pais em favor de melhores condições para PCDs. Isso era muito bom, mas atraia os olhares de pena, outros olhares irritados pelas mudanças que aconteciam na escola. Alguns implicavam, debochavam, e eu sofri com a falta de respeito de alguns colegas. A diretoria precisou intervir algumas vezes, deixando a situação ainda pior porque eles sentiam raiva e falavam coisas que me deixavam triste. Não foi fácil e percebi que nem os professores estavam preparados, não sabiam como me tratar e tudo aquilo foi ficando tão sufocante que acabei pedindo aos meus pais para me deixar estudar em casa.
Meus pais, desde o acidente passaram a me tratar como seu bebê novamente, atendiam todos os meus pedidos. Por isso, os convenci de que estaria mais feliz longe de tudo aquilo e eles querendo me proteger acabaram concordando. Eu sabia que apesar de ter sido um pedido meu, querendo fugir de tudo e acabar de uma vez com todo tormento que estava vivendo, também encerrava com qualquer mínima rotina de normalidade que eu pudesse ter. E foi assim que meus dias e noites se tornaram todos iguais. Ninguém foi até a minha casa perguntar por mim ou conversar comigo. Imagino que sentiram até alívio já que não teriam mais mudanças ou chamadas na diretoria. Nina era a única que dia sim dia não, estava lá. Para os demais eu me tornei invisível e por isso, passei a observar tudo. Tinha muito tempo para pensar e criar histórias na minha cabeça sobre as pessoas que eu observava. E a chegada daquele menino lindo, me deixou animada como há muito tempo eu não sentia. Eu passei a observar toda a rotina dele como uma psicopata. Eu sabia que ele saia para correr de manhã, que seu nome era Jonas, sabia o horário que ele ia e voltava do colégio. Em pouco tempo fez até amigos, pois vi um dia em que ele saiu de tarde, uma caminhonete parou e ele entrou. Estava tão distraída olhando que nem percebi  quando Nina entrou no meu quarto:

- É o Jonas que você tá olhando?
- Aí que susto Nina! Não bate mais não?
- Eu bati, chamei, sua mãe gritou quando cheguei, mas parece que nada disso te tirou do transe, é claro que iria tomar susto mesmo.
- Eu não escutei
- E essa distração toda foi por causa do Jonas?
- Bom, ele é um vizinho novo, né? Uma fofoca a mais para eu observar já que não tenho muito o que fazer
- As pessoas gostaram dele no colégio, as meninas já estão em cima e os caras querendo fazer amizade
- Hum, bom pra ele né - tentei desconversar
Porque você não desce e vai fazer amizade com ele?
- Ele parece do tipo popular, não tô interessada em mais um olhar de “coitadinha” da menina na cadeira de rodas. E além disso, para ser invisível lá embaixo, eu prefiro ser daqui de cima que a vista é melhor.
- Luiza, você não sabe se será assim. Está julgando o rapaz antes mesmo de conhecer.
- Eu já conheci tipos iguais a ele no colégio, esqueceu? E recebi olhares que não quero receber mais. E olha que eram pessoas que me conheciam a vida toda. Imagina esse que nem me conhecia quando eu podia andar.
- Tudo bem, eu não vou insistir. O que quer fazer hoje?
- Caminhar no parque - Nina abaixou a cabeça e eu me arrependi do que disse.
- Desculpa, eu acho que estou de mau humor, se importa em conversarmos depois?
- Tudo bem, eu vou embora. Se precisar de mim pode me ligar ou mandar mensagem.

Ela foi embora e eu fiquei me sentindo triste. Desde o acidente, apesar de todos terem virado as costas para mim, de saber que a minha vida nunca mais seria a mesma e que meu futuro jamais será o que eu sonhei, eu sempre fui resiliente, ninguém tinha culpa e por isso, ninguém merecia raiva. O único pedido que fiz foi sair da escola, fora isso, não me revoltei e não fiquei deprimida. Aprendi tudo que era necessário para me locomover em casa, agi de forma prática a nova realidade que eu teria. Não tinha opção, era aprender a viver na minha nova condição ou depender cada vez mais de ajuda. Nada faria a situação mudar. Isso era algo inusitado para uma adolescente, diziam os médicos.
Porém, essa semana me senti de mau humor e até com raiva. Mas afinal eu era uma adolescente e como qualquer menina da minha idade, eu tinha meus dias ruins.

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